REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS
MAIS DE 30 ANOS
Parte I
Parte I
Carlos Costa Almeida
Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. Tive a
sorte de nascer para a cirurgia geral ao mesmo tempo que nasciam para todo o
país o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos.
Os quatro fomos companheiros ao longo destes anos e não me agrada a ideia de
podermos vir todos a desaparecer um dia ao mesmo tempo (Parte I destas Reflexões).
A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes
anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam, e por isso merece
com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais (Parte II).
Serviço Nacional de Saúde (SNS)
O SNS foi uma ideia nascida no Reino Unido e depois
aplicada no nosso país com um êxito notável. De tal modo que foi sobrevivendo sob
a governação dos vários partidos que, sozinhos ou em combinações várias, dela
estiveram encarregados. A ideia era o Estado prestar cuidados de saúde a todos
os cidadãos, como parte das suas funções e aplicação dos impostos recebidos.
Por isso os meios para essa prestação foram a pouco e pouco espalhados por todo
o território nacional, em zonas urbanas e rurais e independentemente da sua concentração
populacional, na forma de centros de saúde para cuidados primários e hospitais
para os secundários. Estes últimos foram hierarquizados em termos de
diferenciação, partindo do princípio de que todos os doentes, vivessem onde
vivessem, teriam um contacto rápido e fácil com um hospital, capaz de lhes
resolver a maior parte dos problemas de saúde ou de os direcionar para outros se
precisando de cuidados mais específicos ou diferenciados.
Estabeleceu-se por todo o país uma rede de hospitais
estatais de boa qualidade, tratando os doentes que os hospitais das
Misericórdias até aí não possuíam capacidade de tratar. E que tinham por isso
de “ir para Lisboa” (ou para o Porto, ou para Coimbra, onde estavam os
hospitais com os meios, ligados às Faculdades de Medicina e onde o ensino pré e
pós-graduado era feito).
Houve, assim, que construir muitos e equipar adequadamente todos,
também com recursos humanos, estes capazes de assegurar as funções que não eram
mais as de canalizar doentes para os hospitais dos grande centros, antes fornecer
uma medicina com a mesma qualidade em todo o território nacional.
Carreiras Médicas
Ao mesmo tempo desenvolveram-se as Carreiras Médicas, cujo
embrião residiu nas carreiras médicas dos Hospitais Civis de Lisboa: as
Carreiras Médicas Hospitalares desde logo estenderam os seus princípios gerais
aos Cuidados de Saúde Primários, embora se tivessem sentido desde sempre
diferenças, sobretudo pelo facto de o trabalho médico hospitalar ser necessariamente
muito mais de equipa e interactivo.
Os quadros dos hospitais públicos foram preenchidos por
especialistas com vários graus de diferenciação, estabelecidos por apreciação
da sua actividade profissional, clínica e científica, e exames com provas públicas
entre pares. O exame de entrada houve tempos em que era o mais difícil e
exigente, e os graus conseguidos na sua carreira profissional hospitalar
permitiam e obrigavam os médicos a um envolvimento e uma responsabilidade cada
vez maiores na gestão dos Serviços e dos Hospitais.
Desse modo se espalharam por todos os hospitais do país
cirurgiões competentes e motivados para trabalhar, aplicando as suas
capacidades e conhecimentos, em vez de
ficarem a gravitar em torno dos hospitais centrais já preenchidos, ou de irem
para o interior trabalhar nos hospitais das Misericórdias locais, realizando toda
a vida apenas a cirurgia que as condições limitadas desse hospitais lhes
permitiam fazer. Aproximar cirurgiões e
doentes em instalações de qualidade, com bons resultados, foi um avanço notável
em termos de saúde.
Com o estabelecimento dessa actividade cirúrgica em todo o
território nacional, incluindo os hospitais mais periféricos, foi possível, e
natural, estender a todo o país a formação pós-graduada, com qualidade
homogénea, aumentando de forma decisiva a capacidade para essa formação. O que,
por sua vez, contribuiu também, e decisivamente, para a fixação de médicos
nesses hospitais.
Internatos Médicos
Os Internatos Médicos, para formação pós-graduada até à especialização,
foram organizados no nosso país de um modo que teve muito de original, e que
incluiu aspectos mais tarde recomendados pelo Advisory Committe on Medical Training, da Comissão Europeia: remunerados,
acompanhados por um orientador, com um currículo mínimo estabelecido e um
programa de formação, avaliação contínua, com direitos e deveres legalmente
estabelecidos, com o objectivo de criar as condições necessárias para uma boa
formação, quer teórica quer prática.
Esta organização para ensino, a que os jovens médicos têm
acesso por meio de um exame público nacional, veio substituir a especialização
por convite dos directores dos Serviços (em geral acompanhando nos hospitais ligados
às Faculdades de Medicina o convite para assistente), ou a formação chamada
“voluntária”, feita a título de favor, sem programa específico e sem direito a
qualquer remuneração pelo trabalho prestado nessa actividade, com tónica no exame
final pela Ordem dos Médicos, no que antigamente se chamava “tirar a
especialidade à Ordem”.
Na sequência directa dessa situação anterior, já depois de
estabelecidos os internatos e com o seu acesso regulamentado mantiveram-se dois
exames finais, pelo Ministério da Saúde e pela Ordem dos Médicos (na base de “o
meu exame é melhor que o teu”...), até a titulação ser unificada, tal como se
mantem hoje.
O trabalho dos internos é pago, mas as responsabilidades de
que são encarregados devem estar de acordo com o seu ano de formação e os
conhecimentos que entretanto adquiriram, reconhecidos pela sua avaliação
contínua. Há uma relação óbvia com as carreiras na sua estruturação, ambos com formação
progressiva avaliada continuadamente e com responsabilidades crescentes dela
decorrentes. Das quais faz parte integrante e obrigatória a ajuda à formação e
ao trabalho dos mais novos.
Entretanto
Entretanto, foram criados os hospitais empresa (EPE), ideia
que até poderia ser boa no sentido de tornar mais ágil e responsável a gestão dessas
instituições, concedendo a cada uma a possibilidade de se destacar das outras
pelos resultados e pelo melhor aproveitamento das condições existentes. No
entanto, a primeira consequência dessa empresarialização é que passou a dominar
a gestão puramente administrativa dos hospitais, eclipsando a gestão clínica, e
os médicos passaram a ser apenas técnicos a fazer serviço numa empresa dentro
do plano definido pela hierarquia administrativa. Contratados para funções
especificas e às vezes transitórias, por objectivos individuais ou ao molhe, a
ideia de equipa a fazer escola aperfeiçoando-se dia a dia foi sendo substituída
pela de uma máquina produtiva que interessa sobretudo manter o mais oleada
possível. A empresarialização, reclamada como mecanismo de agilização e maior
eficiência, redundou numa mais completa funcionarização dos médicos, agora até
com horários ao minuto e relógios de ponto. Que discutem e reivindicam acima de
tudo contratos, horários e remunerações.
Como cúmulo do triunfo da gestão administrativa, alguns
colegas, em vez de lutarem pela primazia da gestão clínica a cargo dos médicos,
com a ajuda administrativa julgada necessária, renderam-se a esta e também
quiseram ter um curso rápido de administrador. E alguns até se desligaram da
medicina por isso... É o caminho inverso do que faz falta.
É claro que os médicos tiveram de continuar a desempenhar
funções de direcção técnica, mas por nomeação aleatória, já que a
hierarquização pela competência traduzida na avaliação periódica entre pares
esbateu-se por completo. Dito por outras palavras, as carreiras, se bem que
nominalmente mantidas, deixaram de ter sentido. Os concursos dentro delas
passaram a ser apenas uma espécie de subida de escalão remuneratório, apesar do
esforço meritório de alguns Colégios para reservar pelo menos a direcção dos Serviços
para os mais graduados dentro de cada Serviço. O que nem sempre se verifica,
prevalecendo às vezes o critério discricionário “amigo” e todo poderoso da
direcção do hospital.
Desvalorizadas as carreiras médicas, o esforço para nelas
singrar necessariamente feneceu, isto é, o esforço pela maior diferenciação, no
sentido de mais experiência, conhecimentos, trabalho produzido (e não de sub ou
super-especialização, que serão alvo de reflexões futuras). Sendo certo, e
valha-nos isso, que o brio e vontade de fazer melhor de muitos de entre nós
compensarão essa falta de estímulo externo, continuará a faltar a avaliação
independente e comparativa dos
resultados conseguidos, e com ela a possibilidade de se acreditar verdadeiramente
na ascensão por mérito.
Quando da minha permanência profissional no Reino Unido, explicava
eu a dada altura com algum orgulho que os concursos das carreiras no meu país,
nomeadamente o de entrada no quadro do hospital, tinham um júri de maioria de
fora do hospital, com o intuito de garantir isenção na avaliação. O comentário
feito pelos ingleses presentes, “Então são os outros hospitais que escolhem a
equipa do teu?”, abalou seriamente a minha visão nessa matéria.
Os hospitais EPE vieram permitir a contratação directa de
cirurgiões, de acordo com as necessidades de cada hospital. O desejo de
contratar os melhores deve estar sempre presente em qualquer empresa, e deve
poder ser posto em prática. Surgem de vez em quando concursos para admissão nos
hospitais, mas que, na ausência de exames com provas públicas, funcionam como
entrevistas de emprego, com a subjectividade que as mesmas necessariamente têm.
Mesmo quando se lhes quer imprimir alguma objectividade, como nos concursos
fechados para recém-especializados, cujo “background” profissional não
extravasa o internato de formação específica terminado e avaliado imediatamente
antes, vemos resultados extraordinários como o de em seis candidatos o pior
classificado no internato ficar em primeiro lugar, ou em quatro o melhor ficar
em último. Pensando bem, no Reino Unido é uma coisa, por cá é outra...
Uma alteração positiva foi a possibilidade de os
especialistas poderem mudar de local de trabalho com facilidade, por interesse
próprio ou das instituições, sem se ter de passar por concursos morosos e que
tornavam essas mudanças muito difíceis. Com o aspecto negativo de a gestão
administrativa, por vezes demasiado enfeudada a políticas locais ou
partidárias, aí ter passado a poder interferir, inclusivamente usando essas
mudanças como arma de pressão política eleitoral. E fala-se de os hospitais passarem
de novo para as Misericórdias, ou para as Câmaras Municipais, tornando-os ainda
mais locais e dependentes da política local e das suas tricas.
O Estado continua a providenciar cuidados de saúde à
população, mas sob a tónica do corte nas despesas com a saúde e com os
funcionários públicos. E essa tónica tem sobretudo justificado duas acções: por
um lado, encerramento de algumas instituições, fusão de hospitais e concentração
de Serviços; por outro, pagamento a instituições privadas da função de tratar
doentes públicos. Isto levou ao aparecimento nos grandes centros urbanos de muitos
hospitais privados, e clínicas, com boas condições técnicas, muitos deles já
com um quadro de especialistas próprio mas que dão também trabalho a muitos
outros a trabalhar nos hospitais públicos.
A redução de capacidade instalada no público, a par duma provável
emigração forçada de especialistas que entretanto se vão formando arrastará consigo
uma redução significativa da capacidade formativa. E esta virá agravar o resultado
do desaparecimento das carreiras hospitalares, que eram um estímulo fundamental
para a formação. Com a agravante ainda de os especialistas das instituições
privadas, no momento, provirem todos dos hospitais públicos. Há sempre a possibilidade de se vir um dia a
assistir a uma mudança de paradigma na formação médica pós-graduada em
Portugal, com envolvimento significativo da medicina privada, mas por agora, tendo
sido os internatos médicos construídos lado a lado com as carreiras, a
derrocada destas é de temer que acabe por levar aqueles a ruir também.
Como última destas reflexões, uma preocupação, em termos de
saúde pública nacional, com a concentração obrigatória que se anuncia de tudo o
que seja patologias mais complexas e meios técnicos e humanos mais
diferenciados nos grandes centros urbanos, quer no público quer no privado. Essa
concentração poderá levar a uma nova desertificação de todo o interior em
termos de cirurgiões diferenciados, capazes, ambiciosos do ponto de vista
profissional, que mais uma vez irão gravitar nesses grandes centros, embora
agora com a possibilidade de trabalhar nas instituições de saúde privadas
entretanto instaladas, pelo menos nas que quiserem investir em cirurgia
diferenciada com a qualidade necess
ária. Desse modo os doentes do interior de
novo terão de “ir para Lisboa”... E a capacidade formativa pós-graduada voltará
progressivamente a circunscrever-se aos grandes hospitais (tornados entretanto
ainda maiores). É, de certo modo, o caminho inverso do que se percorreu nestes
últimos trinta anos. Apesar de isso, ao fim e ao cabo, acompanhar tudo o que
tem levado a concentrar a população e os meios nos nossos grandes centros
populacionais, com desertificação da periferia (o que é, aliás, característico
de qualquer país pobre e com dificuldades sociais), não creio que seja um modelo
a desejar para o futuro. Esta é uma questão de bom senso e de não ignorar o que
previamente deu bom resultado.
Pub. Revista Portuguesa de Cirurgia, Numero 31, Dez 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário