KANT, O MEU AMIGO E A SUBESPECIALIZAÇÃO
Carlos M. Costa
Almeida*
No final do curso dos liceus, no exame do sétimo ano, um dos
meus colegas de turma teve a sorte de, em vez de reprovar, ir à oral a
Filosofia. Perante o adiamento de um desastre provável, resolveu ir falar com o
professor que lhe iria fazer o exame oral. Porque calhou, por mero acaso, ter
sido destacado para isso o nosso próprio professor, homem muitíssimo sabedor e
competente mas também exigente, o que, naturalmente, não ajudava o preocupado
estudante. Não se pense, por isso, que lhe tivesse passado pela cabeça pedir
menos rigor na sua avaliação: tal seria inútil, senão mesmo contraproducente,
tratando-se de quem se tratava. Não, o meu amigo, pouco aplicado na disciplina
mas nada estúpido, foi-lhe pedir algo, sim, mas de outro género.
O nosso professor era, como disse, muito bem preparado em
filosofia, a qual ensinava muito bem, e um profundo conhecedor dum filósofo em
particular, Emmanuel Kant, o que ele a cada passo afirmava, citando-o amiúde nas
suas aulas e nas conversas informais connosco. Filósofo alemão do final do
século XVIII, o pensamento de Kant, complexo, abrangendo profundamente vários
aspectos da mente e do comportamento humanos, teve influência decisiva em
muitos filósofos alemães que se lhe seguiram, pode-se dizer que marcou
profundamente o pensamento filosófico do século XX e continua a estar presente
em muitas das actuais correntes. Pois a proposta foi: “Eu sei que o sôtor é um entusiasta do Kant, eu também sou, sabe?
Quero propor-lhe que o meu exame seja só, exclusivamente, sobre o Kant. Uma
conversa de nós os dois sobre ele!”. Apanhado de surpresa, o professor
respondeu: “Rapaz, o Kant é realmente muito interessante, mas olha que assim
ficas sem defesa, se não souberes o suficiente e eu não te perguntar sobre mais
nada tenho de te reprovar, entendes isso?!”. “Com certeza, eu corro o risco, sobre o Kant,
só.”
Quando nos comunicou esse trato para o exame (que demoraria
ainda umas semanas a acontecer), tentámos demovê-lo, temendo o resultado pelo
nosso amigo: “Eh pá, olha que o Kant é difícil, o capítulo é grande, e assim
vais ter de o estudar de trás prá frente e da frente pra trás!”. Retorquiu
tranquilamente: “Pois, mas sempre é mais fácil do que estudar o livro todo!...”
Fez exame e passou, com uma nota razoável.
Sabia filosofia? Não. Sabia alguma coisa sobre Kant? Sabia.
Conseguia perceber a influência de Kant nos outros filósofos? Provavelmente
não. Conseguia perceber o que os outros filósofos tinham ido buscar a Kant? Não.
Entendia como os filósofos da sua época podiam evoluir sob a influência de
Kant? Seguramente não.
O nosso professor era um perito em Kant? Era. Sabia filosofia?
Sabia. Podia ensinar o pensamento de Kant? Sim. Podia ser professor de
filosofia? Podia. Se só soubesse Kant podia ser professor de filosofia? Não.
Este é um episódio, absolutamente verídico, que me tem vindo à
cabeça com alguma frequência, mais vezes agora. Quando vejo colegas que se
prepararam muito numa determinada área, limitada, da sua especialidade e quase
nada, ou muito pouco, no resto, renegando-o mesmo. São subespecialistas. Quer
dizer, nem chegam a ser especialistas, ficaram-se por um dos capítulos do livro.
De modo que têm uma utilização limitada, muito específica. E um conhecimento
por um funil. O que é o contrário de um especialista, bem preparado na sua
especialidade, que se interessa depois mais por uma determinada área, onde até
mostrou mais capacidade, e a desenvolve, perfeitamente
enquadrado no conjunto, sendo uma mais-valia global para o Serviço consoante este
necessitar. Chamo a isto “superespecialização”, é o contrário de “subespecialização”
e é, obviamente, o desejável que aconteça.
Para que não haja especialistas de uma dada especialidade
presentes no hospital e doentes urgentes dessa especialidade não sejam tratados
por falta de um subespecialista; ou por haver subespecialistas doutras áreas que
não da necessária. Quantos subespecialistas de cada naipe são precisos num
Serviço duma especialidade? Quantos pode
cada hospital pagar?
E, a este propósito, vem-me também à ideia que se um dia
necessitar de ser operado gostaria de sê-lo pelo melhor cirurgião do mundo. Mas,
como é pouco provável que ele possa operar todos os doentes do mundo, se calhar
terei de ser operado por outro. E note-se que não digo “por outro que seja bom”:
porque todos os cirurgiões têm de ser pelo menos bons. Podem ser mais do que
isso, menos é que não.
* Director de Serviço de Cirurgia do
CHUC-Hospital Geral (Covões), Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra,
Presidente da Associação Portuguesa de Médicos da Carreira Hospitalar
In Revista da Ordem dos Médicos (ROM), Fevereiro 2016
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