20.2.11

EM RODA LIVRE

Dois mil milhões de euros de prejuízo acumulado na Saúde. Ou quatro mil milhões, há quem o afirme… O Ministério da Saúde diz que não é tanto, embora não saiba bem quanto é… Mas dá-se por muito feliz, em conferência de imprensa convocada expressamente para tal, porque neste Janeiro a despesa diminuiu 6% em relação ao mês de Janeiro de há um ano. Por acaso no mês em que o Governo ficou com 5 a 10% dos vencimentos dos trabalhadores da Saúde, incluindo de horas extraordinárias feitas há vários meses…
Mas pronto, diminuiu o gasto. O que em si seria bom, não fôra o dinheiro fora do bolso dos funcionários e a poupadeira com medicamentos, cada vez mais a cargo dos doentes. Os portugueses já são, de longe, os cidadãos europeus que mais pagam para a saúde, para alem dos seus impostos. Os que podem pagar, porque cada vez mais há quem não tome os remédios de que necessita por não ter dinheiro para os comprar, o que equivale a uma poupança, claro… A isto juntou-se a continuação do encerramento de serviços de urgência, de maternidades, de centros de saúde e de centros de atendimento permanente, a fusão de hospitais (que mais não é que um forma encapotada, mas grosseiramente à vista de todos, de reduzir serviços, equipas e, se calhar, e se for preciso poupar ainda mais, hospitais), a limitação e encerramento de consultas, a eliminação de alguns centros únicos e de ponta, a falta de material e de assistência em vários hospitais públicos, com necessidade por via disso de peditórios e quotizações de doentes e funcionários para se poder continuar a trabalhar com um mínimo de qualidade.
Tudo isto surge em catadupa, em desespero, e sem o Governo dar mostras de ser capaz de equilibrar as finanças da Saúde nacional por outro modo que não seja a redução de despesa com muito do que nos é essencial. Um modo que (tal como, classicamente, fazem as empresas em dificuldade da nossa terra) passa por reduzir os ordenados dos trabalhadores, caminhando depois para o seu despedimento… antes de, finalmente, declarar a falência, inexorável em quem só poupa e não aumenta a produção e o rendimento.
Na realidade, é todo um frenesi em poupar. Mas a par de gastos que não seriam sequer imagináveis antes de se mudar a administração dos serviços de saúde! Gastos e gastos em produtos informáticos os mais variados, num alarde de “novo-riquismo” que até seria cómico não fôra a falta de dinheiro para tanta coisa mais importante. A abundância de pessoal administrativo, quando se pretende desesperadamente reduzir o pessoal médico e de enfermagem. Os contratos individuais de trabalho feitos, por critérios que Deus saberá, por valores muitos deles absolutamente inesperados e impensáveis em relação aos ordenados dos pobres dos “funcionários públicos” que ainda existem. Os prémios de “produtividade” distribuídos entre gestores de hospitais estatais, no meio de inúmeras medidas de contenção para os doentes e para os restantes trabalhadores desses hospitais.
É claro que tudo isto afecta necessariamente a qualidade dos serviços de saúde, nomeadamente dos hospitais, o que muito rapidamente se tornará evidente mesmo para os próprios doentes. Começa a haver sinais de falta de assistência às populações, com manifestações repetidas nas ruas, coisa impensável há meia dúzia de anos atrás. A saúde é já o segundo problema na mente dos portugueses, depois do desemprego, quando no início da década era um assunto resolvido.
O primeiro grande sinal de alerta deveria ter sido a descida abrupta de Portugal no ranking internacional da qualidade em saúde. Agora, foi o aumento da mortalidade infantil, depois de 24 anos a descer, coroa de glória do nosso Serviço Nacional de Saúde, e que assim é comprometida. Depois disto será que vamos todos continuar a assobiar para o lado, juntamente com o Governo?! É que este descalabro vem de trás, da última meia dúzia de anos, não tem nada que ver com a actual crise financeira internacional, nada mesmo.
Mas o pior ainda não é o que atrás se descreve. O pior é que de todas as mudanças que foram feitas nos hospitais do Estado, para além do desastre económico-financeiro que só não vê quem não quer ver, resultou uma situação de desestruturação que retirou aos hospitais o esqueleto que lhes permitia fazer a formação pós-graduada, a avaliação da sua actividade clínica e científica, a escolha dos mais capacitados para as várias funções de direcção e de orientação. Juntamente com isso, e grandemente por causa disso, os mais preparados têm vindo a abandonar os serviços públicos, e estes, ainda a pairar pela vis a tergo, aproxima-se o momento em que se irão estatelar no solo. Ora se é neles que desde sempre se fez a preparação dos especialistas neste país, onde irá ela ser então feita?!
Ao destruírem-se serviços e hospitais (incluindo os que foram, ou estão prestes a ser, destruídos pelo processo de fusão, agora na moda), inutilizou-se bruscamente o trabalho de décadas, de muitos e muitos profissionais que foram criando uma escola, de transmissão progressiva de conhecimentos e experiências, que é assim que se transmite o conhecimento médico desde que ele se escreve e se estuda, desde o seu criador, Hipócrates. Estas medidas destroem tudo duma penada, por despacho, aparentemente sem consciência do que está a ser provocado, e da repercussão que irá ter nas próximas dezenas de anos. Porque destruir pode ser rápido, reconstruir leva sempre muito tempo.
Quer dizer, a Saúde continua na sua descida, sem controlo, em roda livre. Por uma ladeira abaixo, sem que ninguém pareça ser capaz de lhe deitar a mão e colocar um travão. Para já só precisa dum travão, depois se verá.
Muito do que atrás é registado, e que temos apontado quase desde o início das chamadas “reformas da saúde” actualmente em curso, já começou a ser evidente mesmo para quem o provocou, ajudou a provocar ou simplesmente aceitou. E esboça-se aqui e ali um esforço político para o corrigir, mas através de comissões formadas pelos mesmos de sempre… Quem desde o início apontou o que agora se vê claramente que está mal, continua teimosamente a ser deixado de fora. Esquecendo-se nessa fuga para a frente o aforismo que diz que “a causa dum problema não pode fazer parte da sua solução”.
In Semana Médica



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