5.7.09

Uma bota difícil de descalçar

E pronto, a situação foi-se deixando estar, a gestão clínica dos hospitais foi completamente engolida pela administrativa, a tónica posta nesta, com afastamento para trás de tudo o que lhe possa constituir o mais pequeno entrave. Pouco faltará, neste trajecto, para o que quer que seja ou se chame a estrutura com funções clínicas (serviço, departamento, unidade, a.i.g., u.a.g., o que for) passe a ser dirigido directamente por um administrador. Por enquanto vai havendo uns médicos de permeio. Nesta conformidade, e nestes hospitais, é difícil entender a permanência duma estrutura como as carreiras médicas. E não se esboça qualquer intenção do governo de alterar seja o que for nessa matéria, eventualmente animado por alguns que parecem estar de acordo. Há sempre alguém disposto a aproveitar a oportunidade de apanhar um comboio vá ele para onde for…
A verdade também é que continua a haver quem acredite que as carreiras se podem manter sem se operar uma mudança significativa nalguns aspectos estruturantes da actual lei de gestão hospitalar. É bom que essa esperança exista, ajuda a não as deixar cair no esquecimento, se bem que, com esta gestão EPE, eu tema que as carreiras possam ter a mesma eficácia e futuro que um cadáver mantido em ventilação para se evitar que o coração pare de vez. Oxalá estivesse enganado.
Os hospitais-empresas foram entregues a administrações nomeadas que se comportam como verdadeiros donos, com a enorme vantagem de ao fim de algum tempo se poderem ir embora sem qualquer preocupação com o que ficar para trás. Gerem o hospital conforme entendem, contratam e descontratam, pagam o que entendem a quem querem, tratam os doentes segundo uma lógica administrativa, isto é, de lucro e de números. E cada instituição dessas é um caso, com as suas particularidades próprias, na dependência directa de quem lá foi posto a dirigir. Os aspectos médicos e de formação foram completamente subalternizados, o que veio criar problemas de difícil resolução numa empresa que acima de tudo é um hospital. Problemas que já levaram o Presidente francês Sarkozy muito recentemente a afirmar, sic: “Je n’ai jamais dit que les hôpitaux devraient devenir des entreprises”.
Mas por cá insiste-se. Haja os prejuízos que houver, não se quer voltar atrás. E, nestas condições, anunciam-se acordos entre os sindicatos médicos e o governo em matéria de carreiras. É um passo importante, com certeza, mas note-se que não é difícil manter os graus que já havia, ainda para mais se os respectivos concursos, abertos a todos os médicos, dentro e fora do Estado, forem da responsabilidade e com a despesa da Ordem dos Médicos. O que é obra é fazer com que esses concursos e graus sirvam realmente para alguma coisa, face à lei EPE: isso é que é uma bota muito difícil de descalçar.
Não vou repetir o que já escrevi tantas vezes, vou apenas chamar a atenção para alguns pontos particulares, e tão somente sobre carreiras médicas e formação.
Os hospitais EPE não têm um quadro de pessoal médico. Cada vez mais contratam quem querem ocasionalmente, para trabalhos específicos, recorrendo de modo crescente a médicos à tarefa e à hora por intermédio de empresas de prestação de serviços. Quem os obrigará a contratar quotas de médicos dos vários graus da carreira? Sobretudo se alguns ganharem mais do que outros e puderem ter o privilégio de ficar dispensados de alguns trabalhos (benefícios da idade, consagrados legalmente)?
Mas têm contratado médicos reformados ou com licença sem vencimento, por valores proibitivos em matéria de função pública e com horários especiais acordados, até para desempenharem funções de direcção e de gestão, funções estas para as quais a hierarquização técnica – leia-se carreiras – não tem significado: considera-se que qualquer um as pode desempenhar.
Numa carreira espera-se que aos que chegam aos lugares do topo sejam cometidas funções correspondentes, de direcção, de orientação, de comando, de representação, de gestão. Não se pode sequer imaginar que alguém no topo seja comandado, dirigido, orientado, representado, por outro que não conseguiu lá chegar.
O lugar de director de serviço (ou de departamento, ou de u.a.g, ou u.i.g., ou a.i.g., ou qualquer coisa dessas) é entregue a quem a administração EPE quiser, por razões que só a ela dizem respeito. Não tem, portanto, implicações técnicas. O que não impede que haja quem obrigue a que os júris para provimento no lugar de chefe de serviço sejam presididos por um director desses (se for chefe de serviço…)! É a mesma incongruência de querer incluir actualmente o desempenho do cargo de director de serviço ou de departamento na avaliação do currículo para chefe de serviço!
Está-se a ver claramente a incompatibilidade entre este estado de coisas e as carreiras médicas, mesmo que se consiga a existência de concursos e graus. Se não tiverem verdadeira tradução na prática hospitalar, no trabalho em equipa que é a pedra de toque da medicina hospitalar, para que servem? Para quê perder tempo e dinheiro, para quê admitir concursos e recursos? Mesmo que sejam por conta da Ordem, é dinheiro do país, vão seguramente encarecer a saúde – e sem qualquer vantagem palpável.
Admitamos que se logra estabelecer um pagamento base diferenciado para cada grau. Como irá uma empresa aceitar pagar mais a um chefe de serviço que não tem qualquer função de chefia, e faz um trabalho básico, do que a um assistente que é director, da sua particular simpatia e detentor de toda a responsabilidade? E será que este último, sob o peso da responsabilidade de zelar para que se faça exactamente o que a administração de quem é amigo – por isso foi nomeado - quer, se contentará em receber menos que o que foi mais longe que ele na carreira mas está sob as suas ordens? Difícil de descalçar, não é?...
Claro que sempre existirá a classificação SIADAP, que permitirá ordenar os ordenados, dos amigos até aos outros, em decrescendo. E a pergunta assoma outra vez ao espírito: para quê as carreiras? Pelo prazer de fazer exame?... E gastar dinheiro em currículos, e em trabalhos?... E deixar de ganhar remunerações exorbitantes no trabalho à tarefa?...
A progressão na carreira ia paralela ao trabalho científico e técnico, ao prestígio conseguido, ao peso profissional, até à direcção dum serviço, à responsabilidade na formação do “seu” pessoal. Tudo isto acompanhava a capacidade e possibilidade de tomar decisões, de orientar o desenvolvimento tecnológico da instituição. Os actuais directores não são necessariamente isto nem têm condições para fazer nada disto (só por acaso, já que a sua nomeação é declaradamente por outros motivos, sejam eles quais forem, do “amiguismo” ao alegado jeito administrativo).
As indústrias farmacêutica e de material cirúrgico têm sido indubitavelmente o suporte do trabalho científico e de investigação nos nossos hospitais. Com intuitos, compreensivelmente, de marketing, mas dos quais resultava uma mais-valia científica notável, ao ser utilizado o seu apoio através dos directores e responsáveis que personificavam o interesse, a prática e o êxito nessa área. Com certeza o marketing levá-las-á a continuar a apoiar sobretudo os que têm possibilidade de decidir, só que o interesse científico desses e a sua capacidade nesse campo estarão agora maioritariamente ausentes, já que não foram escolhidos por isso. Quer dizer, a tal mais-valia científica do marketing empresarial está a um passo de se desvanecer, por mau aproveitamento.
E tanta coisa mais se poderá antever, num acordo de carreiras face a esta lei de gestão hospitalar, mas vamos ficar por aqui. Nunca fomos chamados a dar a nossa opinião, mas sempre a procurámos deixar expressa, para não sermos um dia acusados de desinteresse, ingenuidade ou má-fé. O tempo será o grande julgador, e cremos que ele no fim nos dará razão.
C. Costa Almeida, in Revista da OM

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