28.12.08

O SILÊNCIO DOS SURDOS

Diz o nosso povo que “o pior cego é o que não quer ver”. De igual modo “o pior surdo é o que não quer ouvir”, aquele que se força a um silêncio circundante que depois interpreta como entende, em geral de aceitação tácita por todos os que o rodeiam de tudo o que faz e diz, de modo a viver tranquilo, na convicção de que vai no caminho certo para ser depois recordado da melhor maneira.
Tive em Inglaterra um Professor com quem aprendi muito, eu e todos os que tiveram a felicidade de com ele trabalhar, vindos dos quatro cantos do mundo. Britânico típico, contido e de poucas falas (à excepção de dias de festa, em que se abria mais), impunha respeito naturalmente, pelo trabalho científico produzido mas sobretudo porque era uma referência para o Serviço em termos humanos e profissionais, a quem se recorria nos momentos de aflição, que ele tomava invariavelmente como seus deixando as eventuais repreensões internas para depois de passada a crise. Pois era clássico esse Professor dizer aos seus colaboradores: “Não me deixem fazer asneiras, avisem-me”. O que isto não significa de inteligência, de espírito de abertura, de vontade constante de aprender e evoluir, e também de ensinar! E que prova de autoconfiança nas suas capacidades e conhecimentos! A este respeito ocorre-me também, gratamente, um outro Professor que tive, quando aluno da minha Faculdade, que publicou um livro sobre “O erro de diagnóstico”, apresentando erros seus e discutindo-os.
A Saúde no nosso país sofreu uma reviravolta nos últimos anos, baseada fundamentalmente no facto de a gestão clínica ter cedido a primazia, por mecanismo legislativo, à gestão administrativa pura e dura. Muito se tem escrito sobre isso, mas muito já se começa claramente a perceber do que vai ser o resultado final de tal mudança. Os administradores hospitalares todo-poderosos tornaram-se a eles próprios o centro dos hospitais, desequilibrando por isso o barco da saúde - esperemos que ainda se vá a tempo de evitar o naufrágio que se anuncia.
Procurou-se criar uma forma de gestão empresarial aplicada aos nossos hospitais públicos, mas não o conseguiram fazer sem eles serem descaracterizados, modificados, mudados na forma e ao mesmo tempo deformados no seu conteúdo. Tudo para que coubessem no esquema de gestão inventado. É como comprar um sistema informático para uma empresa mas para ser capaz de o aplicar ter de mudar toda a empresa. Em vez de ter a capacidade de construir um programa (ou modificar um já existente) de modo a registar e coordenar com eficiência o trabalho normalmente produzido.
Cada vez mais vozes se vão erguendo contra o que está, mas sem resultado, sem qualquer inflexão no programa talhado pelo governo nesta matéria, para além de pequenas mudanças que a política do dia a dia recomenda, dentro daquele princípio político de que “é preciso mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma”. E a verdade é que os problemas fundamentais criados pela nova forma de gestão hospitalar se mantêm inalterados, pesem embora as vozes discordantes.
Querer hospitais geridos como empresas, mas para alguns nomear “gestores” com um marcado e por todos reconhecido espírito de funcionário público, no significado mais monolítico, limitado e burocrático do termo, não poderia ter bom resultado. Retalhou-se o país em dezenas de empresas públicas de saúde geridas ao bel-prazer e livre arbítrio de quem foi posto a dirigi-las, com resultados no terreno muito diversos. E o Estado ficou refém dessas pessoas: a única intervenção que pode ter na gestão é a sua substituição por maus resultados, financeiros, clínicos ou ambos - sempre tardia, portanto.
A nova ordem hospitalar dizia-se pretender agilizar a gestão dos hospitais. E, no entanto, levou indirectamente à realidade de nalguns reinar a burocracia mais perra e desmotivante, enquanto governamentalmente se entrou pela obrigatoriedade de horários médicos rígidos, totalmente desadequados à maior parte da actividade clínica e em grande medida atrofiando-a.
Qualquer empresa procura contratar os melhores, oferecer-lhes condições de trabalho (às vezes bem mais importantes e sedutoras para os mais aptos e ambiciosos do ponto de vista intelectual, e bem mais baratas, do que qualquer engodo financeiro), e entusiasmá-los num projecto clínico de que façam parte e pelo qual se batam. Um projecto ganhador, lógico, bem estruturado, e não uma “coisa” puramente administrativa, sem base clínica séria e por isso sem futuro e condenada ao fracasso em pouco tempo, tratando-se duma empresa que é um hospital.
Encher os hospitais de administradores e querer fazer acreditar que é da função deles que dependem os bons resultados da instituição é um erro crasso. Pensar que os médicos que mais conversam com os administradores e lhes dizem que sim a tudo é que são os tais com capacidade para gerir os serviços, é outro. E maior ainda quando se pensa que um bom médico, com trabalho científico produzido, procurado pelos doentes e respeitado pelos colegas, não é por isso capaz duma função tão complexa e elevada como “gerir”.
Foi a desierarquização introduzida deste modo nos hospitais que os levou a uma situação que, a não se reverter rapidamente, se tornará insustentável. Por enquanto vai valendo um resto da organização que existia pelas carreiras médicas. Trocou-se algo com princípio, meio e fim, e que por isso durou, com êxito, durante dezenas de anos, por uma coisa que não tem estrutura que lhe permita sobreviver muito mais tempo.
Foi animador ver recentemente o político motor de tudo isto temer que o “serviço público dos hospitais EPE” possa estar em perigo. Tem razão, tardiamente. Teria sido bom vê-lo reconhecer também que tinha igualmente razão quando, antes de ser ministro, considerava as taxas moderadoras no internamento hospitalar, implementadas depois por ele, inconstitucionais e aberrantes.
O problema maior para os ideólogos da nova ordem na saúde é que antes as coisas funcionavam sem sobressaltos. E agora não. E cada vez mais encontramos doentes portugueses, a viver em Portugal, que tiveram de ir a Espanha, e a Cuba… E hospitais que limitam as patologias a tratar adentro das suas portas porque algumas saem caro, e preferem enviar os doentes para outros, perto ou longe - para outras empresas, elas que gastem o dinheiro. O tratar doentes é sopesado do ponto de vista económico-financeiro, variando entre quem tem vistas largas de supermercado ou visão de merceeiro de bairro. O aspecto clínico é apenas secundário, adaptado ou distorcido perante os contratos estabelecidos na esfera administrativa pura e simples. Insiste-se, por exemplo, em realizar centenas de pequenas intervenções, no projecto da cirurgia do ambulatório, mas ocupando para tanto as salas de operações onde cancros e outra grande patologia deveriam ser operados. E a verdade é que o ministério da saúde ficou refém da lei que elaborou: não pode intervir nestas situações, mesmo que oiça falar delas e saiba que elas existem.
Mas de tudo isto o aspecto mais preocupante, para já mas principalmente a médio e a longo prazo, é o da formação médica. Também aqui se está a viver dos que se formaram e ganharam experiência na ordem antiga, isto é, no SNS antes da reviravolta e do fim real das carreiras médicas. Estas estão longe de ser um problema apenas sindical de contratação colectiva de trabalho ou de patamares de progressão salarial. Muito para além disso elas foram durante anos o garante dum esforço constante de aperfeiçoamento e um estímulo eficaz para a produção de trabalho científico, de investigação clínica, de revisão de resultados, e ao mesmo tempo um sistema de avaliação com critérios definidos e concursos públicos sujeitos a discussão e escrutínio administrativo, científico e legal. Tudo acabou, a desierarquização científica e técnica obtida pela nova lei de gestão hospitalar vai paulatinamente conduzindo à anarquia e ao salve-se quem puder.
Ouve-se isto a cada passo. Não querer ouvir e imaginar um silêncio circundante atento e venerador não adianta. E não tem futuro.
Para além disso, criaram-se nos hospitais duas situações perfeitamente antagónicas mas ambas profundamente prejudiciais para a prática médica. Dum lado, tarefeiros médicos contratados à hora, sem possibilidade de integração com os colegas com quem trabalham episodicamente em variadas instituições. Do outro, médicos forçados a serem funcionários públicos de horário rígido como qualquer funcionário manga-de-alpaca, com redução da sua actividade clínica àquele número de horas. Mesmo que se diga agora que não é bem assim, é: senão para que serviria o controlo biométrico pelo dedo?! Uma originalidade portuguesa, em abono da verdade, que não existe noutro país, nem com dedo nem doutra forma qualquer - por que será?!
Por tudo isto já se esperava uma quebra na qualidade da medicina, com repercussões na saúde. Que vão aumentar exponencialmente, com a formação contínua pós-graduada posta em causa pelo desaparecimento das carreiras e o afastamento dos mais diferenciados. Foi sem surpresa que se viu a posição de Portugal na Europa no campo da saúde baixar do 6º lugar (quando éramos 12º a nível mundial) para 19º no ano passado e agora para 26º. A descida foi rápida, mas surpreendido só terá ficado quem não ouvia o que se dizia.
A qualidade da medicina foi sacrificada à vertigem administradora das novas administrações. Tudo tem que girar à volta dos administradores - centro do sistema hospitalar – e daí também não veio mais-valia económica, já se esperava e foi o que aconteceu, só quem não queria ouvir se espantou: o défice financeiro da saúde não diminuiu, antes aumentou, e muito. Pudera, a saúde mais barata é a que se consegue com a boa medicina, e a função dos administradores hospitalares deveria tão-somente ser ajudar a criar as condições necessárias para que ela possa surgir. Praticada e gerida pelos médicos, clinicamente.
C. Costa Almeida in Tempo Medicina

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