1.7.24

      VAMOS ÀS CARREIRAS – VI*

Terminamos hoje esta série de seis artigos sobre as carreiras médicas. Neles  procurámos elencar o que elas tinham e conseguiram de bom, e mostrar o que as colocou em agonia. E o que o seu desaparecimento previsivelmente arrastará. Procurando ao mesmo tempo mostrar o que há a fazer, e também a não fazer, para eventualmente as ressuscitar. Duma forma positiva, e para que não nos acusem de estarmos entre todos os que se calaram, ou acomodaram ou, pior ainda, se aproveitaram. Façamos uma resenha final.

A nova lei de gestão hospitalar conduziu acima de tudo a uma “administradorização” dos hospitais, com passagem da gestão clínica para um plano totalmente secundário, perfeitamente subsidiário da gestão administrativa, da contabilidade pura e dura, tornada o centro de tudo. Foi uma mudança radical em instituições que deveriam estar centradas na actividade clínica, desempenhada e gerida pelos médicos, com o contributo directo do pessoal dos laboratórios e de enfermagem. Assistiu-se, por via dessa lei, a um aumento enorme do número de administradores nos hospitais, assumindo eles o papel de capatazes dos médicos. Sem que nada, absolutamente nada, os qualifique para essas funções. Quer dizer, o acessório tornou-se a si próprio central, e secundarizou o que é o âmago imprescindível e nuclear duma empresa para ser um hospital. 

Em termos económico-financeiros as coisas não melhoraram, já vimos. Em França procura-se reduzir custos com a saúde – recordemos que era a melhor da Europa nesse campo (quando Portugal era 6º), mas com uma despesa de 14 % do seu PIB, contra os nossos 10%, do nosso pobre PIB. Para isso eles têm procurado recriar e desenvolver os hospitais públicos, no sentido do que nós tínhamos e ao invés do que temos vindo a fazer. A primeira medida de contenção que tomaram foi reduzir drasticamente as despesas com administradores e administrativos – também ao arrepio do que por cá se tem feito…

Em termos médicos desencadeou-se uma total desierarquização nos serviços hospitalares, com chefes nomeados apenas porque alguém “achou” que sim. Só isso levaria ao colapso das carreiras, assentes na hierarquia profissional conferindo autoridade e responsabilidade. Foi, mais uma vez, a ideia de substituir líderes por capatazes: o resultado está à vista. Toda a prática da medicina hospitalar foi posta em causa, e isso vai-se reflectir na qualidade dos serviços prestados. Que diminuirá ainda mais à medida que a formação for sofrendo, por essa mesma ausência de estruturação baseada nos conhecimentos científicos, na diferenciação técnica, nas provas dadas.

As carreiras soçobraram, os internatos estão em perigo, o Serviço Nacional de Saúde torna-se periclitante. Como já referimos, o grande responsável por isto continua a dizer que faria tudo igual – ainda não se apercebeu do que fez. Um Secretário de Estado diz que não sabe o que vai ser do Serviço Nacional de Saúde – já se começou a aperceber.

O Ministério da Saúde, agora liderado por uma médica, reconhece finalmente que as carreiras médicas estão acabadas mas fazem falta (o que durante muito tempo afirmámos quase sozinhos, criticados até por quem não queria que se falasse sequer nisso). Mas, em vez de aceitar modificar o que veio provocar a derrocada, insiste apenas em tentar remediar os estragos. Será que isso é possível? Ou estar-se-á, também aqui, a trocar o essencial pelo acessório?

Pretende-se que as carreiras sejam baseadas num acordo colectivo de trabalho, dele derivando um contrato colectivo a que só pode aceder quem estiver inscrito no sindicato que subscreveu o acordo. Quer dizer, quem quiser entrar numa carreira terá de estar obrigatoriamente sindicalizado. E no sindicato certo. Isto é, um médico, para além de ter de estar inscrito na Ordem, para poder exercer medicina, passa a ter de ser sócio dum sindicato para poder percorrer a sua carreira profissional.

Uma orientação política na saúde, que pareceu conduzir a uma liberalização nessa área, acabou por redundar na proletarização dos médicos. Tão grande e completa que, para poderem trabalhar integrados numa carreira, terão de estar sindicalizados. Quem não o quiser estar poderá tentar um contrato individual de trabalho, mas sem acesso à carreira.

É isto que parece desenhar-se para o futuro, e que levanta, obviamente, várias dificuldades. Desde logo, e se os sindicatos existentes não se entenderem? Se um fizer um acordo com o Ministério e o outro não? Se a carreira passar a ser tão dependente dum sindicato, que razão impedirá os médicos de se juntarem em sindicatos que melhor defendam os seus interesses na sua área ou modo de trabalho específicos?

O estabelecimento de graus baseados em concursos inter-pares, como os que havia, não levanta dificuldades. Mas o que obrigará cada unidade empresarial hospitalar, que contrata quem quer, do modo que entende, para fazer o que achar melhor, sem quadro fixo, a pagar mais a um médico por ter subido na carreira, ainda por cima para continuar a  fazer o mesmo que fazia antes?

Quem obrigará as empresas-hospital, geridas com independência quase absoluta, por administrações lá colocadas como se fossem donos, a atribuir mais responsabilidade, mais autonomia, funções de chefia e de direcção técnica, aos médicos que forem subindo na sua carreira? É evidente que a lei de gestão aqui em causa teve como um dos seus fins, precisamente, quebrar essa hierarquia de competência, paralela e atentatória das nomeações pelos chamados “bons serviços”. Daí a avaliação SIADAP que se prepara para os médicos, o que, como também desde logo dissemos a quem nos quis ouvir, já se previa após a desagregação das carreiras.

Trata-se de um sistema de classificação que existe para si próprio, que não deriva naturalmente da actividade normal dos trabalhadores. Quer dizer, obriga a que cada um faça o que é bom para a classificação, embora isso não corresponda ao seu trabalho normal. É algo estranho enxertado na actividade clínica do hospital, que consome esforço e tempo a esses trabalhadores e veio obrigar a toda uma burocracia extra – também aqui mais administradores e funcionários administrativos – usada depois por quem rege o hospital do modo que quiser. O que é que isto tem a ver com uma carreira profissional? Nada. Quando ainda por cima os avaliadores são os chefes nomeados “ad hoc” pelas administrações.

É evidente, a nosso ver, que a progressão na carreira tem de ser a base da progressão no hospital, justificando a evolução remuneratória. Os chefes terão de ser os mais graduados, com a autoridade que daí deriva, liderando a equipa com a aceitação de todos, e orientando depois a avaliação do desempenho dos seus colaboradores. Qualquer coisa que não leve a isto não fará reviver as carreiras. Reconhecemos as suas virtualidades e acreditamos que seria possível recriá-las, mas em convivência com o que as matou é que não cremos que possam ter muita saúde e vitalidade. Continuaremos a lutar por elas, com o apoio que temos sentido dos colegas, dizendo frontalmente o que pensamos. Mesmo que isso nos afaste dos que tomam decisões e dos que participam nelas. Mas com a consciência tranquila, e esperança no futuro. 

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra


    VAMOS ÀS CARREIRAS – V*

Outra influência notável que as carreiras médicas tiveram foi nos internatos médicos. Eram duas estruturas que, pode-se dizer, se completavam, imbuídas do mesmo sentido de progressão pela formação, pela aquisição de conhecimentos, pelo trabalho feito, tudo avaliado periodicamente e conferindo cada vez mais autonomia e responsabilidade.

Os internatos, as suas regras e programas, os orientadores, os responsáveis pela formação, tudo isso assentava nas carreiras, e vai sobrevivendo porque, pelo menos teoricamente, elas se mantêm. Mas à medida que os mais velhos forem saindo - e estão a sair de forma acelerada e prematura – corre o risco de rapidamente estiolar e perder valor e sentido.

Já há sinais claros dessa tendência, para quem os quiser ver. Um dos pontos altos no começo duma carreira era quando pela primeira vez um especialista se via designado para integrar um júri de exame final de internato. Não só isso traduzia o reconhecimento pelos seus pares de que estava em condições de avaliar outros, àquele nível, como era um factor de enriquecimento curricular na sua vida profissional. Pois agora há jovens especialistas que, pura e simplesmente, recusam desempenhar essas funções. Recusam interromper o seu trabalho diário hospitalar, deslocar-se a outro hospital, “perder tempo” a examinar candidatos a especialistas na sua área. E, vendo bem, não terão razão? Vejamos: não estão integrados em nenhuma carreira, são contratados para fazer um determinado trabalho clínico, ganham em grande medida à peça ou à hora, quantos mais doentes tratarem mais bem vistos serão por quem dirige o hospital, não precisam dum currículo diferente desse para poderem ser nomeados por esses dirigentes para lugares de responsabilidade, até mesmo directores de serviço ou de departamento. É assim ou não é? Poderá achar-se incorrecta a atitude daqueles colegas?!   

A preocupação com a aprendizagem e o ensino era uma constante comum aos internatos e às carreiras, enformados, na realidade, à volta disso, conduzindo à evolução profissional e à ascensão a funções e lugares cada vez de maior importância, responsabilidade e poder e obrigação de decisão. No início, aliás, o internato era o primeiro grau da carreira. Num dado momento, o Ministério da Saúde retirou os internos da carreira médica, por razões administrativas, e agora retirou todos os médicos, por razões do mesmo tipo. Ficaram apenas os que já estavam integrados nelas, ocupando lugares a extinguir quando vagarem, uma vez que não há novas entradas. Curiosamente, nestas condições os concursos para os graus e lugares vão-se multiplicando nos vários hospitais, numa autêntica girândola de fim de festa. Unicamente porque quem entrou tinha a expectativa e tem por isso o direito de tentar progredir até ao topo.

Os especialistas contratados pelos hospitais EPE não pertencem às carreiras médicas, não podem por isso concorrer nesses concursos nem, por maioria de razão, integrar os respectivos júris. Antes desta nova lei de gestão, a sua entrada na carreira fazia-se no fim do internato, agora não se faz nunca. Pertencem ao colégio da sua especialidade, e é só por isso que podem fazer parte de júris de fim de internato. Já vimos que com razão para grande falta de motivação – a mesma que para o ensino, seguramente.

Também seria legítimo pensar que a desierarquização hospitalar provocada pela lei de gestão EPE iria reflectir-se negativamente na prossecução dos internatos. Vejamos: quem é o responsável máximo pela formação em cada Serviço? O director de serviço, naturalmente. Mas é natural que esse não seja o mais diferenciado no Serviço? Ou, pelo menos, um dos mais diferenciados? Aceite como tal pelos outros? Isso corresponde obviamente a uma desestruturação, que é a maneira melhor de destruir uma estrutura.

A pouca ou nenhuma preocupação evidenciada com a desestruturação na área da formação ressalta desde logo, também, do facto de se nomearem como presidentes de júris finais de internato assistentes hospitalares em júris que integram, para além deles, chefes de serviço. É uma antevisão do futuro imediato: como serão formados, e estruturados, os júris de fim de internato? Com que critérios? Quando não houver necessidade de progredir numa carreira técnica para se ser seja o que for dentro de um hospital? E em qualquer júri?

Ao longo desta série de artigos temos vindo a enumerar as consequências negativas da actual lei de gestão hospitalar nas carreiras médicas. E na formação pós-graduada e no serviço nacional de saúde. A Saúde no nosso país assentava num tripé: carreiras médicas, internatos médicos, Serviço Nacional de Saúde. Com este conjunto conseguiram-se resultados notáveis, num país pequeno e de poucos recursos, pondo-o a ombrear nesta matéria com os melhores, gastando muito menos que eles. Um dia alguém resolveu mudar a parte administrativa, por razões exclusivamente desse foro. Dessa mudança intempestiva – e parece que pouco pensada – resultou a aniquilação de um daqueles pés, as carreiras, carcomido por uma doença (a dita lei de gestão), em vias de se propagar rapidamente aos outros (os internatos e o SNS). Coxo dum pé, o tripé abana e tomba rapidamente. Pretendeu-se, na prática, substituir a gestão clínica por uma gestão preponderantemente administrativa, e disso não se vislumbram quaisquer ganhos, nem sequer administrativos e económico-financeiros. Como consequência directa, apenas um incremento notável da burocracia, acompanhando o aumento galopante do número de administradores nos hospitais e a sua actividade, recompensada, aliás, com aumentos de ordenado e bónus pecuniários.

O responsável principal pelo descalabro diz a quem o convida para dizer que faria tudo da mesma maneira – ainda não se apercebeu. Um dos Secretários de Estado da Saúde afirma que não sabe o que o Serviço Nacional de Saúde virá a ser no futuro – começou a aperceber-se. Os médicos já sabem, os doentes virão rapidamente a saber.

Se algo bem estruturado, tendo passado no teste do tempo, operacional, com um resultado global invejável num país em que tudo o mais anda por baixo quando comparado com o que se passa lá fora, é alterado nalguns aspectos e fica por isso, de repente, desestruturado e cambaleante, seria lógico pensar que haveria de se corrigir o que se fez e que perturbou severamente o conjunto. Quer dizer – e temo-lo dito nas raríssimas vezes que fomos chamados a emitir opinião – seria lógico esperar-se que algo na lei de gestão hospitalar fosse corrigido. Mas não, pretende-se teimosamente enveredar pelo caminho de mudar tudo o resto.

Na verdade, acabou por se entender agora que há necessidade de recuperar o que ficou lesado, nomeadamente as carreiras médicas. Mas, a manterem-se inalteradas as mudanças desestruturantes, afigura-se muito improvável vir-se a obter um novo equilíbrio eficaz e duradouro, isto é, um novo tripé com pés fortes e estáveis. Parece-nos um tratamento unicamente sintomático e não etiológico, quando se conhece a etiologia e se tem cura para ela. Os médicos não actuam assim. Ou não devem.

Carreiras assentes num contrato colectivo de trabalho são a proposta actual. Será possível compatibilizá-las com a gestão EPE? E com a avaliação SIADAP que se anuncia para os médicos? Da próxima vez terminaremos esta série de artigos de opinião sobre o problema das Carreiras Médicas em Portugal em 2009.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra 

 

    VAMOS ÀS CARREIRAS - IV*

Todos concordam que as carreiras médicas são necessárias no nosso país, uma necessidade que foi demonstrada ao longo de três dezenas de anos de resultados notáveis em termos de saúde e de formação médica. E o “todos” inclui agora o ministério da saúde – “agora” significando que temos um ministro médico que percebe realmente o que se passa nesta área. Há, portanto, um consenso alargado neste ponto, embora suspeite que alguns dos mais novos ainda não sentiram essa necessidade, lá no fundo aliviados com o que se traduz de início por menos trabalho, menos estudo, menos provas a prestar. E é natural que se procure optar pelo caminho mais fácil; mas compete a todos perceber o que faz falta e que a formação contínua na nossa profissão é fundamental, daí derivando a ascensão a lugares de maior responsabilidade e mais autoridade profissional por parte dos que demonstraram ser mais capazes e estar mais preparados. O que não fará sentido é uns terem o trabalho e outros serem guindados a tais lugares. Se assim for, então é bem verdade que o caminho a escolher pela maioria será, naturalmente e sem se poder criticar, o mais fácil. 

A recriação duma carreira com os mesmos graus que existiam, a que se tem acesso por concursos julgados pelos pares, não me parece de grande dificuldade. Na verdade, ao fim e ao cabo, será suficiente deixar tudo como está no papel nesse aspecto. Onde está o busílis da questão é naquilo que na verdade matou as carreiras, apesar de elas continuarem teoricamente a existir. E que é a lei de gestão hospitalar EPE que, por um lado, impede a entrada de novos profissionais nessas carreiras e, por outro, fez tábua rasa dos graus e categorias ainda existentes.

À luz dessa lei cada hospital contrata quem quiser, quando quiser, para fazerem o que entender ao preço que estipular. Onde é que se encaixa aqui uma carreira? E não oiço o governo querer mudar este estado de coisas.

Pela mesma lei, e pela interpretação que as administrações hospitalares EPE fazem dela, os lugares de direcção, de chefia, de responsabilidade quer na assistência quer no ensino e formação, são distribuídos por quem os administradores “acham”, sem qualquer relação com graus ou categorias. E esta atitude está tão disseminada, diria é tão homogénea no país, que por certo tem algo comum a todos os hospitais a motivá-la. Faz sentido nestas condições falar-se em carreiras? Para além de que os resultados, em termos de assistência e formação, não se afiguram nada bons a médio e muito menos a longo prazo. Não se as carreiras tiverem a importância fundamental que se lhes atribui. E que leva agora a querer fazê-las renascer.

A salvação invocada baseia-se no contrato colectivo de trabalho. Não em mudar uma lei que destruiu algo que funcionava muito bem, mas sim em alterar o que estava bem para se adaptar de alguma maneira ao que, intencionalmente ou por inépcia, o veio destruir. A qualidade que fez triunfar a espécie humana foi a adaptabilidade activa, isto é, os humanos serem capazes de modificar o meio exterior e adaptá-lo a si próprios. Essa é uma capacidade individual, não da espécie, a qual vive, assim, da acção de alguns dos seus nessa matéria. Esperemos que, neste assunto das carreiras, os intervenientes directos consigam traduzir o que os outros pensam e querem e logrem chegar aos resultados almejados por todos. 

O contrato colectivo de trabalho poderá vir pôr alguma ordem na desordenação total das contratações feitas agora, em que se chega a conceder licenças sem vencimento a médicos logo de seguida contratados pelo mesmo hospital, para fazerem o mesmo ou menos do que faziam por muito mais dinheiro. Dinheiro de nós todos, já agora; quando se apregoou mudar a lei de gestão para se conseguirem os mesmos resultados a um custo mais baixo. Mas em que é que isso poderá, só por si, ser decisivo nas carreiras médicas?

Ao contrato colectivo apenas poderão aceder os médicos inscritos num sindicato que o tenha subscrito, e logo aí se antevêem dificuldades numa classe tão arreigada ao liberalismo de actividade. Será mais um passo na tentativa da sua completa proletarização, e ainda por cima agora em nome de algo que ela não vem necessariamente resolver: as carreiras médicas. Se a lei EPE se mantiver como foi delineada, os hospitais-empresas continuarão a não ter quadro de pessoal definido, com lugares por categoria profissional. Os contratos a efectuar serão “à la demande” de cada administração, pelos critérios que escolherem como bons para a empresa que foram postos a dirigir. E do mesmo modo os hospitais privados. Quem garante que escolherão preferencialmente os mais graduados, sobretudo se pelo contrato colectivo de trabalho lhes tiverem de pagar mais? E quem os obrigará a dar mais responsabilidades e funções de orientação aos mais graduados que eventualmente tiverem a trabalhar para eles? É claro que o contrato colectivo poderá tentar acautelar algo semelhante, mas lá estará a classificação de desempenho feita pelo próprio hospital – quer dizer, pelo conselho de administração, directamente ou por interposto chefe por eles nomeado – para colocar nos lugares as pessoas desejadas. Neste panorama será difícil falar-se em carreiras.

Foi sintomática a apresentação conjunta feita pelo ministério da saúde do projecto das “novas” carreiras médicas e do projecto de classificação intra-hospitalar de desempenho dos médicos. Aliás, as carreiras anunciadas só tinham realmente de novo o facto de não terem repercussão na actividade hospitalar de cada um, parecendo ter sido planeadas apenas para manter os médicos ocupados a estudarem e a fazerem trabalhos, ao mesmo tempo que se retirava importância prática do ponto de vista do seu emprego  a tudo o que conseguissem ser capazes de fazer nesse campo. Quer dizer, aceita-se que devem manter um esforço constante de progressão, o que implica que uns possam ir mais longe que outros, mas as administrações, depois daqueles concursos todos, reservam-se o direito de escolher quem bem entenderem, pelos critérios que lhes apetecer, nomeadamente das simpatias pelos colegas “dentro do mesmo projecto de gestão”, eufemismo habitual para compadrio e pagamento de favores. Como vai o contrato colectivo lidar com isso? Como vai evitar que na vida hospitalar dos médicos se instale o princípio que melhor que ser político é ser amigo do político certo para cada momento? Carreiras médicas?!... Quando muito carreiras iguais às existentes para o resto da administração pública, para subida de escalão de vencimento de acordo com a opinião do chefe. Sem qualquer relação com formação.

E todos aqueles que optarem por um contrato individual de trabalho? Por não quererem estar forçosamente na dependência dum sindicato, ou por assim conseguirem ganhar mais? Ficam fora das carreiras?

No meio de tudo isto há um aspecto fulcral também, que é a formação de internos. De que as carreiras médicas até há dois anos existentes eram como que uma continuação natural, e que continua a funcionar sem problemas de maior pela vis a tergo que traz, mas que se irá necessariamente ressentir a breve trecho. Disso falaremos na próxima vez, e também da anunciada classificação de desempenho dos médicos.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra


     VAMOS ÀS CARREIRAS - III*

A actual lei de gestão hospitalar, criando os hospitais EPE, derivou do facto de quem administra os hospitais públicos considerar que não era capaz de o fazer bem com a lei previamente existente. Teve, portanto, uma causa puramente administrativa, isto é, mudou-se a lei de gestão para quem administra ser capaz de administrar. O problema é que com esse objectivo atropelaram toda a organização clínica hospitalar, desestruturando-a e conduzindo à inactivação e destruição das carreiras médicas. Isto sem aumentar visivelmente a eficácia administrativa, mas com um aumento exponencial do número de administradores circulando nos gabinetes e corredores dos hospitais. Dito de outro modo: alteraram as regras do jogo para o poderem ganhar mas, além de não o conseguirem, baralharam-no, e suspeito que no momento actual já ninguém sabe muito bem que jogo se está a jogar e como vai acabar. 

Quer dizer, com uma alteração de gestão que no fundo traduziu uma incapacidade, destruíram algo que funcionava bem, tão bem que foi considerado como a base do Serviço Nacional de Saúde, o qual, por sua vez, levou a que um país pobre e em geral desorganizado e ineficaz como o nosso pudesse ser considerado o 12º no mundo, a contar de cima, na área da saúde. E o problema maior é que a modificação foi feita de tal forma, de tal maneira impensada – ou tão elaborada… -, que tornou muito difícil uma adaptação das carreiras médicas de modo a salvá-las. Mas falemos sobre isso, sem derrotismo, antes com os pés bem assentes na realidade.

Uma das alterações impostas foi que as administrações dos hospitais empresarializados podem contratar quem quiserem, pelos critérios que estabeleceram como necessários para o hospital que foram postos a dirigir. Seria com certeza inteligente para um empresário se procurasse contratar profissionais bem preparados, com provas dadas, no topo da carreira. Mas isso implicaria duas coisas: pagar-lhes mais, por um lado, e, por outro, ter um projecto de desenvolvimento da “sua” empresa-hospital que a levasse a evoluir e a fazer cada vez mais e melhor. Talvez haja algum conselho de administração assim, ou venha a haver, mas a rotina não tem sido essa: antes se pretende apresentar muitos doentes vistos e tratados a baixo custo, descartando-se para os vizinhos tudo o que custe mais caro ou implique mais investimento. Incluindo em pessoal especializado mais capaz e diferenciado.

Lá se vai, assim, a lógica do quanto mais diferenciado melhor. Algumas excepções talvez o pudessem ainda justificar, mas não passariam disso mesmo: excepções. E não se pode gerir um país com base nalgumas excepções. Que, louváveis que sejam, não serão com certeza um estímulo para uma carreira.

A grande esperança dentro do “status quo” criado reside no contrato colectivo de trabalho, que se pretende abranja tudo, hospitais privados e hospitais empresarializados. Estes adquiriram as regras e a liberdade da medicina privada, embora com capital do Estado. Mas este apenas pode intervir na dotação orçamental, na nomeação dos conselhos de administração e na avaliação dos relatórios finais, não pode dirigir ou alterar a gestão propriamente dita. Veja-se, por exemplo, que todos os conflitos eventualmente existentes com os trabalhadores – já não funcionários públicos – não são resolvidos em sede do Ministério da Saúde, terão de ser dirimidos nos tribunais, civis ou administrativos. Os trabalhadores – médicos incluídos – terão de se queixar ao sindicatos, onde, aliás, pelas novas regras, terão de estar inscritos.  

As novas leis de gestão hospitalar e da administração pública, ao acabar a função pública tal como a conhecíamos, vieram, na verdade, curiosamente, proletarizar mais os médicos e indirectamente aumentar a intervenção dos sindicatos. Estes são os interlocutores legais do governo e dos patrões, e os representantes dos médicos face aos tribunais em problemas laborais. O contrato colectivo insere-se nesse campo e, dadas as especificidades e as diferenças entre os vários tipos de actividade médica, não sei se a evolução não passará também por uma diferenciação de sindicatos e pelo consequente aumento do seu número. 

No que respeita à actividade hospitalar – que interessa especificamente à nossa  Associação – o contrato colectivo virá impedir o que agora se passa com contratos individuais feitos à completa vontade dos gestores dos hospitais, contratando quem querem, pelo ordenado que decidem, com a diferenciação que entenderem, sem prestarem contas a ninguém. E sem os contratados saberem mesmo quanto ganham os outros. Quer dizer, pelas mesmas funções – independentes do seu grau e categoria obtidos nas carreiras médicas moribundas - podem auferir vencimentos absolutamente diferentes, e sem sequer o saberem. Nestas condições, qual o estímulo para procurarem ascender numa carreira profissional? Estímulo, sim, para terem amigos políticos que lhes facultem de algum modo uma contratação que tem muito de política, no sentido óbvio da “politiquice”. E que lhes permitam, por exemplo, obter uma licença sem vencimento e acto contínuo serem contratados para fazer o mesmo que faziam antes mas pelo triplo do pagamento… Mais uma vez discricionariamente e sem qualquer relação com quaisquer carreiras passadas e muito menos futuras.

Mas se o contrato colectivo pode pôr alguma ordem nisto, continuará a não haver quadro de trabalhadores em cada uma das empresas-hospital, entregues que estão pela actual lei de gestão hospitalar à actuação individual de cada um dos conselhos de administração. Consoante o que planearem para o “seu” hospital (e pode ser deles tão pouco tempo como 3 anos, ou até menos), assim poderão contratar estes ou aqueles médicos, mais ou menos diferenciados. Preferindo os mais diferenciados, claro, se lhes pudessem pagar tão pouco como aos menos diferenciados. Mas se o contrato colectivo não permitir isso, terão de investir nos mais baratos, que esses irão com certeza progredir por si próprios, ganhando experiência ao tratarem muitos doentes, de preferência com pouca despesa... E quem subir no grau de diferenciação, irá passar a receber mais? Ou terá de procurar outra instituição que lhe queira pagar o correspondente ao novo grau? Quem passará a receber mais? Quem for nomeado por serviços prestados? Ao hospital, ou a um ocasional conselho de administração?...

Em que medida poderão coexistir, na actual gestão hospitalar, graus e categorias obtidos por concurso (sejam quem forem os júris para tal) e a avaliação burocraticamente feita por chefes nomeados discricionariamente em cada instituição, com regras como as do SIADAP, que, se não fossem desmotivantes e geradoras de irritação, conflitos e desinteresse, seriam risíveis por ridículas?

E qual a repercussão de tudo isto na formação médica contínua?

É todo um conjunto de problemas que foram criados há menos de dois anos e que estão por resolver. De que continuaremos a falar na próxima vez.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra


   VAMOS ÀS CARREIRAS – II*

Ouvimos há dias na televisão uma enfermeira portuguesa das que mudaram o seu local de trabalho para o Reino Unido dizer que o tinha feito não principalmente pelo dinheiro mas sobretudo pela “possibilidade de progredir na carreira”. Reconfortante, ouvir isto. As carreiras profissionais não são apenas uma obrigatoriedade incómoda de concursos trabalhosos que filtram e dificultam a progressão profissional; ou uma maneira de ir periodicamente aumentando de ordenado; são acima de tudo um estímulo para quem quer aperfeiçoar-se e ser cada vez mais capaz, com esse aperfeiçoamento reconhecido e premiado.

A progressão profissional enquadrada numa carreira faz-se por patamares, correspondentes a capacidades e experiência adquiridas pelo exercício profissional e reconhecidas pelos pares mediante análise criteriosa do trabalho realizado e dos conhecimentos evidenciados. Quer dizer, o reconhecimento da evolução e do valor demonstrados pelo profissional é da responsabilidade de quem tem condições também profissionais para o fazer. Quem avalia e classifica tem obrigatoriamente de ter sido já avaliado antes, de ter dado provas cabais e igualmente reconhecidas das suas competências no grau ou categoria para que agora é avaliador. É esta progressão estruturada, apoiada, de acumulação de conhecimentos, experiência e trabalho realizado condicionando mais autonomia, mais liberdade, mais autoridade mas também mais responsabilidade, que basicamente constitui as carreiras. Pelo menos as carreiras médicas que defendemos, que no nosso país existiram por três dezenas de anos e cuja falta se começa rapidamente a sentir.

 É despiciendo voltar a falar da importância dessas carreiras na evolução altamente positiva que a saúde e a medicina portuguesas tiveram nos anos em que elas realmente existiram. Sobretudo no que aos hospitais diz respeito – e por eles eu falo - em que elas permitiram a consecução de um facto notável: a homogeneização por todo o território nacional da qualidade e das condições de trabalho, estas como incentivo profissional maior. Fazendo só por si com que médicos altamente preparados e de grande capacidade intelectual e técnica se permitissem sair dos três grandes centros de referência existentes até então e espalhar-se por todo o país. Numa descentralização que os que não percebem do assunto teimam em forçar, seja por uma obrigatoriedade de capatazes seja pelos chamados estímulos financeiros. Os médicos sempre foram mal pagos no Estado, mas era aí que ainda iam tendo mais condições para exercer a profissão que os entusiasma, para se realizarem profissionalmente, para subirem degraus de diferenciação, de responsabilidade, de organização, de gestão, de autoridade. Isso os ia compensando, para além de lhes ser dada a possibilidade de trabalharem muito e assim poderem ganhar mais alguma coisa.

E tudo isto teve o óptimo resultado que se conhece. E que ao fim e ao cabo acabou agora por ser finalmente reconhecido pelo Ministério da Saúde deste Governo, com uma médica como ministra, ao apresentar um projecto de reconstrução das carreiras médicas. Mas convenhamos que com a lógica política seguida é difícil conseguir que sejam reconstruídas, desvirtuadas e inutilizadas que foram precisamente por legislação entretanto produzida e implementada na área da gestão hospitalar. Para além de que é evidente que para muitos dos nossos políticos (e não só), habituados não a carreiras mas a carreirismo, aquelas são um estorvo para este.

Ao obrigar-se a uma progressão na carreira, com funções, responsabilidades e prerrogativas de autonomia e chefia dependentes dos respectivos graus e categorias, estaríamos a inviabilizar os lugares de favor, de nomeação política ou por amigos políticos ou de mesa de café (ou ambos). Em suma, estaríamos (ou estaremos, se formos optimistas, apesar de tudo) a impedir a descida de pára-quedas nas chefias técnicas das instituições de muitos que na verdade nem chegaram a levantar voo… E isso, na actual conjuntura, torna difícil um projecto adequado de carreiras, carreiras médicas incluídas.

Para além de que os nomeados para os lugares de nomeação política nos hospitais, e a quem foi concedido um poder quase absoluto (a que deveria corresponder uma responsabilidade máxima, mas esta sempre iludida…), desde logo divulgaram a ideia de que tudo dependeria das suas escolhas pessoais para as chefias técnicas intermédias. E como tal escolheram quem melhor acharam, sem atender minimamente – em muitos casos – à diferenciação profissional e provas dadas dos escolhidos e dos recusados e afastados, às vezes acintosamente. Com certeza que houve excepções dignificantes, mas o que sucedeu mostrou à saciedade que nos hospitais EPE as carreiras médicas deixaram de contar. A não ser para satisfazer as expectativas dos que nelas entraram há muitos anos, satisfação que as administrações não podem legalmente ignorar, tendo por isso que dar seguimento aos concursos dentro delas e aumentar as remunerações dos médicos envolvidos, de acordo com a sua subida de categoria. 

Durante dezenas de anos a função pública foi um esteio da nossa sociedade, e uma referência em múltiplos aspectos, nomeadamente de entrada por concurso, de estabilidade de emprego, de remunerações, de condições de trabalho, de qualidade (sempre discutida mas sindicável, sujeita a queixas, a avaliações e a correcções). Quem puser esta última característica em causa recorde-se que a formação médica pós-graduada dentro das carreiras era totalmente pública, e a boa qualidade da nossa saúde, reconhecida mundialmente em 2002, era de responsabilidade quase exclusivamente estatal. Havia com certeza indicação para se mudarem algumas coisas, mas o que se passou foi o mudar a tónica do público para o privado. Quer dizer, a orientação política actual parece ser a de diminuir drasticamente a função pública e aumentar na mesma proporção a privada. E, concomitantemente ou por isso mesmo, as regras da actividade privada é que se tornaram na referência nacional, legislando-se sucessivamente para que essa mudança seja efectivada à face da lei.

Não vou aqui seguramente apreciar opções políticas, individuais e muito menos dum governo eleito, mas o liberalismo que rapidamente se tem vindo a instalar entre nós, nomeadamente no campo da saúde, desaconselha por certo soluções possíveis e desejáveis noutro tipo de sociedade, e exigirá outras. Sem discutir minimamente a bondade dum qualquer sistema político de gestão do nosso país, mas como médicos – isto é, técnicos fundamentais na área da saúde -, devemos questionar se opções claramente vencedoras num sistema podem ser sequer minimamente adequadas noutro. Há transplantações em que a rejeição é fatal.

A existência duma carreira médica pressupõe – exige – que os seus graus e categorias sejam reconhecidos nas diversas instituições em que os médicos trabalham. Reconhecimento que implica consequências. Nas entidades públicas empresariais já assim não é: ele existe apenas no que respeita aos vencimentos, e num quadro a extinguir quando vagar. Em que medida nas empresas privadas o poderá vir a ser?

Como poderão coexistir carreiras médicas e um sistema de avaliação eventualmente tão extraordinariamente aberrante como o dos professores ou o do  SIADAP? Em que as remunerações não terão que ver com o lugar na carreira mas sim com a avaliação feita por um qualquer nomeado como chefe? No próximo artigo continuaremos.

*Artigo escrito em 2009.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra


30.6.24

                         AS CARREIRAS MÉDICAS.

       SERÁ QUE FALMOS TODOS DA MESMA COISA?

Perante a contínua degradação do SNS, é hábito apontar como uma das causas a falta que as carreiras médicas fazem. Mas as carreiras continuam a existir, que falta fazem então? Para se entender esse facto, é necessário saber o que elas foram pensadas para ser, e o que começaram por ser, e foram durante duas dezenas e meia de anos. Período no qual o Serviço Nacional de Saúde funcionou sem vacilar, com bom resultado e o entusiasmo de todos. Só então se poderá compreender o que actualmente não são, e o que deveriam mudar para voltar a ser.

Já há demasiado tempo que as carreiras médicas se alteraram na sua essência, e por isso não é fácil transmitir a quem nunca as viveu noutras condições o que eram. A APMCH nunca deixou de estar presente em todas as reuniões em que teve oportunidade de transmitir isso, e assim vai continuar. Reforçada nessa atitude pelo reconhecimento cada vez mais marcado e generalizado da falta que elas fazem. No sentido de ajudar a perceber o que se pretende dizer quando se fala de “carreiras médicas”, vamos republicar neste blog uma série de seis artigos intitulados genericamente “Vamos às carreiras”, com o intuito de deixar uma espécie de fundo histórico sobre a matéria, que sirva de base de entendimento a quem nunca as viveu no seu modo original – e eficaz – de ser.

    VAMOS ÀS CARREIRAS - I*

O Ministério da Saúde apresentou um projecto de Carreiras Médicas, o que não é de admirar sendo a actual ministra médica. Todos os médicos – apenas com as excepções que confirmam a regra, e sem outro significado – reconhecem a utilidade que elas tiveram nos últimos 25 anos e o que em matéria de medicina e de saúde através delas se conseguiu em Portugal. Surpreende é que o projecto ministerial contenha obviamente em si todos os ingredientes para a sua falência total, como se fosse esse o seu objectivo final ou, então, como se não tivesse sido elaborado por médicos.

A Associação dos Médicos de Carreira Hospitalar sempre defendeu, e defende, que é forçoso modificar a actual Lei de Gestão Hospitalar para que as carreiras médicas possam ser reconstituídas adequadamente. Não sei se por isso, mas a verdade é que o ministério da saúde nunca mostrou qualquer interesse em nos ouvir. Ao reduzir o número de interlocutores nesta matéria, redu-la também a um assunto meramente sindical, o que claramente não é. Trata-se antes de um assunto que interessa profundamente a toda a sociedade médica, e por isso todos os médicos deverão ser ouvidos. Com certeza através da Ordem e dos sindicatos médicos, mas também individualmente ou organizados noutras associações, sobretudo as mais ligadas à área em causa. Como a nossa, especificamente de Médicos de Carreira Hospitalar, e que tão activa e interventiva se tem mostrado.

O ministério ouvirá quem quiser, tem esse direito. Mas nós não deixaremos de partilhar com os colegas as nossas opiniões e os nossos projectos sobre as carreiras médicas, porque as consideramos fulcrais para a medicina no nosso país. Já há tempos avisámos para não se brincar às carreiras, e nunca como agora esse aviso foi tão oportuno. Postos fora da discussão, iniciaremos com este uma série de artigos de carácter eminentemente prático, objectivo, concreto, tendentes a levar a alguma conclusão realizável e adequada. Começaremos hoje com uma avaliação global do projecto governamental apresentado.

As carreiras médicas não acabaram por ao fim de 25 anos se ter descoberto que estavam mal estruturadas: acabaram porque a nova lei de gestão hospitalar as esvaziou e inviabilizou - acabaram porque cada grau ou categoria não corresponde a uma função institucional diferente, e mais diferenciados estão a ser chefiados e dirigidos por menos diferenciados, escolhidos por razões no mínimo pouco claras.

Os graus e as categorias da carreira agora projectados apenas repetem os que já existiam, e isso é bom. Mas a exigência extra na sua manutenção, por recertificação, contrasta dramaticamente com o facto de a sua posse não ter repercussão nem na contratação, nem na remuneração, nem na avaliação dos médicos pelas instituições onde trabalham. Pelo contrário, tudo isso fica subordinado aos administradores, como se fossem eles o ponto-chave das instituições de saúde. Quer dizer, deixa-se profissionais que desde os seus tempos de alunos do liceu se mostraram com muita capacidade intelectual e de trabalho, e que obtiveram depois uma diferenciação técnico-científica elevada numa área difícil, exigente e complexa como é a medicina, serem dirigidos, governados e avaliados por outros que não são nem fizeram nada disso. É claro que não se pode esperar um bom resultado, e surpreende-nos que a ministra da saúde, sendo médica, possa subscrever tal coisa.

As aparentes grandes preocupações técnicas e científicas demonstradas neste projecto chocam também com o que está a ser exigido aos médicos nos hospitais EPE, de sobretudo muitos números, de grande “produção”, não em termos científicos mas de doentes vistos e tratados, nem que seja apenas por, a título de exemplo, muitas pequenas operações em cirurgia do ambulatório, ocupando-se com isso os blocos operatórios onde se deveriam fazer intervenções de grande cirurgia. Como compatibilizar tudo isto? Não jogam umas coisas com as outras, a não ser que seja só para ficar no papel algo que nem sequer é exequível, como essa avaliação complexa prevista periodicamente para cada consultor conseguir ser recertificado.

Repare-se que não foi ingénuo fazer-se a apresentação do projecto de carreiras médicas ao mesmo tempo e conjugadamente com um projecto para a avaliação dos médicos. Esta declaradamente não vai ter que ver com as carreiras, mas é através dela que se paga mais ou menos, se contrata ou descontrata, se atribuem ou não funções directivas em cada instituição... Atente-se por uma vez que a hierarquização técnico-profissional, fundamental para o exercício institucional da medicina mas que com a aplicação desta lei de gestão hospitalar desapareceu, não é compatível com essa avaliação feita por pessoas não credenciadas utilizando factores administrativo-pessoais. Avaliação do género das que vamos vendo na função pública e nos professores, entregues a pessoas nomeadas por razões pessoais e políticas misturadas com outras, e que não podem realmente avaliar do ponto de vista profissional e técnico uma vez que não têm idoneidade expressamente reconhecida para tanto.

A pedra base de qualquer sistema de avaliação é o reconhecimento pelos avaliados dos avaliadores enquanto tal. Isso é conseguido nos concursos das carreiras, e terá de ser através deles que se singra nas instituições. Mas já assim não é agora, imperando o “achismo” dos conselhos de administração, e estes projectos apenas vêm consagrar esse facto, condenável mas espantosamente ignorado, excepção feita a alguns Colégios da Ordem, honra lhes seja feita.

 Os médicos do quadro estão a desaparecer a olhos vistos, por reformas antecipadas ou licenças sem vencimento, dada a enorme insatisfação que sentem mercê da lei que rege os hospitais públicos. Os outros são reféns da necessidade dum contrato de trabalho, e cada administração contratará quem quiser ao preço que quiser, ao livre arbítrio de quem manda e com base nas disponibilidades remuneratórias, sendo as remunerações dependentes não do grau ou categoria do médico mas sim duma avaliação exercida na própria instituição por quem foi posto a administrar. Esta avaliação só pode ser contestada pelo funcionário no tribunal administrativo: repare-se que o próprio ministério da saúde não tem capacidade de intervenção, ele também refém da sua infeliz lei de gestão hospitalar.

Pelo que vamos vendo à nossa volta, não nos parece que as administrações dos hospitais empresas queiram contratar os mais graduados e diferenciados, a não ser que lhes possam pagar tão pouco como a outros menos diferenciados… E para conseguir isso, sempre terão à disposição as quotas na avaliação… de modo a reduzir as remunerações dos não queridos, mesmo que muito diferenciados.

Veja-se a importância fulcral nesta lei dos administradores de hospital. A propósito, como é feito o seu recrutamento?... E a sua avaliação?

No meio de tudo isto, para que servem as carreiras médicas? Para nos manter entretidos? Ou será uma maneira de o governo alijar mais uma responsabilidade cara, a da formação médica contínua, e entregar essa despesa, trabalho e incómodos à Ordem dos Médicos? Com que contrapartidas para os médicos? Com que incentivos? Com que meios de execução prática? O esforço, tempo perdido e despesa dos concursos das carreiras servirão para quê? No próximo artigo voltaremos a falar.

*Artigo escrito em 2008.

In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra


22.11.22

 COIMBRA, A SAÚDE E A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

Carlos Costa Almeida

Coimbra é uma cidade universitária há mais de sete séculos, com uma marcada importância da Saúde na sua actividade, e que ainda há uns anos era tão grande que lhe chamaram “capital da saúde”.  A esse nível era dotada de dois dos Hospitais Gerais Centrais de Portugal, o Hospital da Universidade (HUC) e o Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), referência cada um em várias áreas da Medicina e da Cirurgia, e, por isso, atraindo a Coimbra profissionais de saúde, doentes, professores, investigadores, estudantes. E foi desta cidade, com esse peso e esse reconhecimento na Saúde nacional, que dois homens conduziram directamente a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS): o Dr. António Arnaud e o Professor Mário Mendes.

Mas Coimbra não conseguiu manter a riqueza que tinha. Desconsiderada por governantes, aquelas duas instituições coimbrãs sofreram um rude golpe quando foi resolvido que iriam desaparecer, engolidas por uma fusão num chamado “centro hospitalar”… mas dum hospital só! E assim surgiu o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), o qual, na prática, mais não passou a ser que o antigo HUC, mas sozinho, sem a presença na cidade do outro, o Hospital dos Covões, parte fulcral do extinto CHC. Esse, progressivamente eliminado como Hospital, desactivado enquanto tal passo a passo, desaproveitada e destruída a sua capacidade instalada, foi transformado numa espécie de nada, que é o que é uma estrutura que vai servindo de muleta ao outro Hospital que, assoberbado com muito mais trabalho e utentes do que tinha, se esforça com dificuldade por cumprir a obrigação que era de dois hospitais centrais públicos. E, por isso, as dificuldades redobradas, o desencanto, os atrasos, as listas de espera, as esperas e as falhas na Urgência, os exames, as consultas e as cirurgias realizados quando podem ser e fora do Hospital… E “inaugurações” nos Covões do que já lá funcionava há muitos anos mais não é que sinal de encerramento dessa actividade no HUC! Quer dizer, redução dos serviços públicos em matéria de cuidados de saúde hospitalares oferecidos aos utentes de Coimbra e da Região Centro.

Essa progressiva desactivação do polo de saúde do Hospital dos Covões, na margem oposta à do HUC, fora do centro da cidade, com espaço para crescer e acessos fáceis, fez concentrar a Saúde no polo HUC, ele próprio também perto doutro Hospital, esse especializado, o IPO. E assim se concentrou tudo em Celas, no meio de Coimbra, com as dificuldades acrescidas de acesso e de estacionamento que se reconhecem há muito tempo. Com o ainda maior agravamento pela projectada construção duma maternidade em cima do espaço esgotado do HUC! Em vez de se manter o que Bissaya Barreto tinha concebido, e conseguido, para a cidade, isto é, dois polos de saúde, um em cada margem, um deles na periferia, que é por onde as cidades crescem, fez-se convergir tudo para um ponto central e sem capacidade de expansão. Como se a real e canhestra intenção fosse atrofiar o que durante anos notabilizou Coimbra no plano nacional, com reconhecimento internacional: a sua actividade em Saúde.

E é o que temos. Mas em 2020, face a esta evolução desastrosa dos cuidados de saúde hospitalares da cidade, surgiu uma Petição “Pela devolução da autonomia ao Hospital dos Covões como Hospital Geral Central - Porque o acesso de todos à saúde em Coimbra e na Região Centro é um direito e um dever”, dirigida à Assembleia da República, que a recebeu. Foi discutida e avaliada pela Comissão Parlamentar de Saúde, para o que foram ouvidos dois dos peticionários (por duas vezes), os três presidentes do conselho de administração do CHUC desde a sua criação em 2012, a presidente da ARS Centro e os dois últimos ministros da saúde. Foi depois elaborado pelo relator dessa Comissão um relatório, aprovado por unanimidade, dando razão total ao peticionado, relatório esse que foi apresentado publicamente no jardim do Hospital dos Covões, porque a sua apresentação no auditório do Hospital foi negada pelo actual conselho de administração do CHUC.

E ficou-se à espera da sua apresentação e votação em plenário da Assembleia da República. Que vai finalmente ter lugar no dia 30 de Novembro de 2022. Dois anos e meio depois.

Veremos o que a Assembleia da República, agora com uma maioria absoluta dum partido, pensa e decide sobre a Saúde em Coimbra. Quando é cada vez mais evidente que o caminho certo da Saúde em Coimbra e na Região Centro é o contrário do que foi tomado, e é o que a Petição a votar solicita, AUTONOMIA PARA O HOSPITAL DOS COVÕES COMO HOSPITAL GERAL CENTRAL, porque o acesso de todos à saúde em Coimbra e na Região Centro é um direito e um dever:

“Desde a criação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) pela junção do Centro Hospitalar de Coimbra (onde se engloba o Hospital dos Covões) com o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), que se tem assistido não a uma fusão mas a uma destruição de um hospital central. Sem qualquer razão assistencial, social, urbanística, científica, ou outra razão aceitável, o Hospital dos Covões tem sido progressivamente desprovido de recursos humanos e recursos materiais, despido de serviços médicos, reduzindo significativamente a capacidade de prestar cuidados de saúde com a qualidade que habituou a população. A centralização de cuidados e serviços médicos não foi solução, apenas trouxe dificuldade no acesso (listas de espera enormes), o “amontoar” de doentes num só hospital sem aparente capacidade de resposta, a redução da qualidade e um risco acrescido para os doentes e profissionais.

Se o Hospital dos Covões já tivesse sido encerrado, o colapso da saúde em Coimbra teria sido muito maior do que foi nesta era COVID. Sim, foi o Hospital dos Covões o epicentro do combate à pandemia em Coimbra. É preciso aprender com os erros de gestão em saúde do passado, para que o presente não se repita no futuro.

É imperativo reverter a "pseudo" fusão do Hospital dos Covões com o HUC, restabelecendo a autonomia e a capacidade que estava há anos instalada naquele hospital central e que resolvia todos os problemas de saúde da população que a ele recorria. Os trabalhadores do Hospital dos Covões estão tristes, desmotivados e revoltados pelo reiterado assédio moral a uma instituição com 47 anos de existência, que é acarinhada por profissionais e doentes. Insistir na continuação desta fusão é continuar a insistir na negligencia de gestão em saúde que se assiste em Coimbra há anos, e num crime contra o direito constitucional do acesso a cuidados de saúde. É um dever do poder político assegurar que todos os portugueses tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade e atempados num serviço público. Um Hospital dos Covões a funcionar em pleno é essencial para se cumprir esse dever, continuar a destruí-lo é um crime que lesa a pátria.

Por tudo isto e muito mais: Dizemos SIM ao Hospital dos Covões!”

21.8.18

MEDICINA E CIÊNCIA

É conhecido o aforismo segundo o qual um médico tem de estudar toda a vida. E isso é inegável, pela parte científica da profissão. O que ontem era verdade, hoje pode não ser, e amanhã ser de modo totalmente diferente, com repercussões decisivas obrigatórias na nossa prática médica, na maneira de estudar e tratar os nossos doentes. Há que manter o passo com essa evolução da ciência, e para isso há que estar muito atentos a ela, e estudar, e ler, e ver, muito, com método, como obrigação, com o desígnio profissional de aperfeiçoamento, de aprender o mais possível para benefício dos doentes que a nós recorrem.

E isto não é retórica, como alguns - poucos, espero - parece pensarem, ao considerarem totalmente ultrapassado o médico “dedicar a vida à medicina”, ainda por cima num mundo com tantos mais atractivos à mão de semear e sem terem nada que ver com o nosso trabalho. E não se trata de “a medicina ser um sacerdócio”, que é óbvio que não é, no sentido de se cuidar dos doentes benemeritamente e por razões morais. Pelo contrário, a Medicina é uma profissão, e em qualquer uma só se pode ser realmente bom se nos dedicarmos a ela de alma e coração, ou de corpo e alma. Que outra coisa, afinal, faziam os supercampeões olímpicos de natação Mark Spitz e Michael Phelps quando treinavam sete horas por dia, ou fazem e faziam os grandes futebolistas como Ronaldo, Eusébio, Pelé, e tantos outros dos melhores, sempre os primeiros a chegar aos treinos e os últimos a sair? Em todas as profissões – porque é de profissões que estamos a falar – há com certeza os que têm individualmente mais jeito, ou mais capacidade, que outros, mas isso não impede que não tenham todos de se esforçar e aprender. Ninguém nasce ensinado, embora alguns possam aprender e evoluir mais depressa que os seus colegas, e haja sempre profissionais mais capazes que outros; o que não pode haver é maus profissionais. E não em Medicina por maioria de razão, já que lidamos com a vida dos nossos semelhantes.

Como dizia um conhecido empresário de muito sucesso no nosso país, o êxito resulta de 10% de inspiração e 90% de transpiração…  Na profissão médica não é diferente, nos seus dois componentes, arte e ciência. Aprende-se, treina-se, pratica-se, desenvolve-se. Uns com mais facilidade, outros com menos, mas sempre com um desejo constante de aperfeiçoamento, de melhores resultados, muitos dedicando-lhe a sua vida profissional, e tirando dela muito prazer, de dever cumprido, de realização pessoal, procurando ser os melhores possível. Mas há alguns outros, no entanto, que se contentam com a mediania, ou nem isso, limitando-se a não ser maus, porque nesta profissão a incompetência não pode ser permitida, e tem de ser impedida, e mesmo penalizada. No dizer de Sir William Osler, “It is astonishing with how little reading a doctor can practice medicine, but it is not astonishing how badly he may do it”.

Seja como for, e enquanto profissão, portanto fonte de rendimento, quanto melhor se for nela, mais se ganhará. Mesmo com as excepções que sempre confirmam a regra, não há como pensar doutro modo: os melhores ganharão mais. Com um senão importante: nesta profissão quem ganha mais também trabalha mais, ou tem essa possibilidade, ao contrário dos menos procurados. Se não se quiser ganhar a vida assim, há outras profissões…

No que respeita ao contacto com os doentes, a mente humana, e a sua psicologia, têm-se mantido inalteradas, o que faz com que observações nessa área feitas há milhares de anos colham perfeitamente no momento actual. Já as sociedades, evoluíram, modificaram-se, a noção do que nelas é normal foi-se alterando, e por isso a realidade de cada época vai sendo diferente, o que tem de ser tomado em conta pelo médico frente aos pacientes, sem dúvida. Tem de se manter o passo também do ponto de vista sociológico, se quisermos estabelecer empatia com cada doente.

Mas os conhecimentos científicos é que mudam mais, e temos de lhes procurar activamente as mudanças. Para isso é fundamental adquirir primeiro uma forte base de conhecimentos médicos, que constituam uma boa cultura médica que enforme o nosso saber profissional, e sobre ela irmos então desenvolvendo mais umas áreas que outras, sem deixar de lado as ligações existentes, permitindo avançar mais longe em cada uma delas e no todo. Porque conhecer muito bem uma área, mas totalmente desenquadrada do resto do complexo, é limitativo e condena a repetir-se o mesmo sem conseguir grande progresso, por falta de inputs e skills obtidos fora da área monótona e exaustivamente repetida. Sendo certo, também, no entanto, que a repetição melhora o desempenho do acto repetido.

O que caracteriza a ciência é a incerteza. Não há verdades científicas imutáveis; há é verdades científicas que não mudaram, ainda. E o progresso vai-se fazendo, com avanços e recuos, observação, registo, investigação. Há que ter um conhecimento científico sólido, sobre o qual se vão inscrevendo, de espírito aberto mas crítico, as mudanças. Se normas são para cumprir, enquanto não houver outras, guidelines são apenas isso, linhas de orientação, e resoluções por consenso estão longe de ser lei, significam apenas que num grupo específico ninguém votou contra elas. Perigosos são os que não sabem o básico e embandeiram em arco com “descobertas” desencantadas num artigo ocasional, ou afirmações definitivas de grupos sem confirmação científica, e que querem de imediato aplicar na prática, e mais, invectivam, como atrasados e ignorantes, os que, cautelosamente e porque têm substrato no assunto, têm dúvidas em o fazer.

E terminemos com este último aspecto, o da agressividade interpares na medicina e na ciência. É um fenómeno que parece estar a aumentar, e que interessa reconhecer e tentar perceber para se poder combater, por profundamente negativo. Dum artigo apresentado no blog Surgical Thoughts (*), a agressividade entre médicos “…em alguns casos é uma forma de defesa pela ignorância quanto ao caso em concreto, o não saber o que fazer, e por isso não se querer comprometer a expressar uma opinião que ficará registada para todo o sempre.” E afirma-se: “A rudeza e agressividade gratuitas entre colegas não são de modo algum passíveis de justificação. A meu ver, são muitas vezes sintoma de ignorância e incapacidade profissionais, sem no entanto esquecer que o cansaço, excesso de trabalho e burnout têm uma forte influência nesse comportamento, que em nada beneficia o doente e o profissional.”

Um aspecto particular dessa agressividade e má criação, e decorrente do desenvolvimento das redes sociais, é a discussão nestas de situações médicas que não se encontram perfeitamente definidas do ponto de vista científico ou social, e por isso sujeitas a opiniões pessoais. Ocasionalmente, em vez de se fazer a discussão tranquila do assunto em causa, com apresentação e discussão de argumentos do ponto de vista médico, cada um invocando os que considere relevantes e procurando rebater os dos outros, formam-se uma espécie de clubes de opinião, em que surgem colegas que perdem, mesmo que momentaneamente, o tino, acusando e insultando do ponto de vista pessoal os que se lhes opõem, atribuindo-lhes ignorância, falhas de carácter ou interesses particulares maquiavélicos ou mesquinhos, isto porque se atreveram a não comungar da sua opinião, assim transformada em verdadeira crença sobre um assunto que devia ser apenas e só técnico. É uma situação que por vezes assume o carácter de verdadeiro bullying contra quem unicamente deseja expressar e trocar impressões de carácter médico com colegas, e que tende a obstaculizar o uso dum meio que poderia ser muito útil para o efeito. E que, fora dessas situações, é mesmo.

Carlos Costa Almeida

In Número 23, Newsletter da Cirurgia C, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC

*http://carloscostaalmeida.wixsite.com/surgicalthoughts/single-post/2018/03/28/Agressividade-entre-m%C3%A9dicos-Um-fen%C3%B3meno-internacional

11.8.18

A EMPATIA NÃO DEVE SER UMA

PALAVRA VÃ

Uma familiar dum paciente nosso escreveu no Livro de Reclamações do nosso Hospital um texto agradecido e elogioso acerca do nosso Serviço, de que destaco o fragmento que se segue.  “No momento de dor perante morte anunciada de um ente querido, é importantíssimo, para o alívio do sofrimento da família, existir momento de diálogo com os profissionais mais presentes junto do doente (enfermeiros). Sem dúvida estes devem marcar a diferença no cuidar, quando acolhem e escutam preocupações da família. Hoje, olhando para trás, relembro as palavras destes profissionais e sinto necessidade de pedir à administração deste hospital que reforce estes profissionais de saúde, de modo a que disponham de tempo para cuidar do doente, ou seja, para não haver falta de cuidados e conforto a este por falta de pessoal e ao mesmo tempo para a família a nível de “apoio” numa fase de tão elevado sofrimento para todos”.  É de empatia que aqui se fala.

Empatia é a capacidade de se entender a emoção dos outros, de compreendermos os seus sentimentos em cada altura, procurando nós experimentá-los de forma objectiva e racional como se estivéssemos na mesma situação vivenciada por eles. É compartilhar a dor psicológica dos outros, é saber ouvi-los sem julgar, sentindo-nos no seu lugar e transmitindo-lhes essa sensação. A empatia assim estabelecida ajuda a compreender melhor o seu comportamento e motivações em determinadas circunstâncias, e a forma como tomam decisões. E orientar a terapêutica de acordo com isso. E leva à confiança do doente no seu médico, sentimento que contribui seguramente para se conseguirem melhores resultados.  Isto não por razões estritamente psicológicas, no sentido de imateriais, ou morais, porque o “humanismo é bom”, mas por razões bioquímicas, muitas delas ainda não estudadas e que apenas se entrevêem, através do que podemos globalmente chamar endorfinas, e que aumentarão a capacidade de resistência do organismo à doença, levando com mais facilidade à sua recuperação face à agressão patológica sofrida.

Já em artigo anterior nesta Newsletter foi abordada a empatia como parte integrante da relação médico-doente. Esta é uma relação profissional, e assim se deve manter, porque é a relação entre um profissional e o objecto do seu trabalho: o doente.  O médico deve tratar os seus doentes da melhor maneira possível, com toda a sua capacidade, recorrendo a tudo o que aprendeu e sabe fazer, sempre com o maior empenho e aplicação, fazendo o máximo por eles, embora, naturalmente, possa ser limitado pelas condições que lhe fornecem no seu local de trabalho, ou pela falta delas. Na sua actuação deve manter a cabeça fria, usar toda a objectividade, seguindo a táctica que achar melhor e empregando a técnica mais adequada, sem permitir que a sua possível afectividade pelo doente lhe tolha isso tudo. O médico não deve tratar pacientes por quem tenha sentimentos profundos, sejam positivos, sejam negativos, e se o  fizer terá de redobrar de cuidados, para não os prejudicar.

Significa isto que não é um dever ter simpatia pelos doentes e seus familiares. Nem poderia ser assim, porque desse modo só iriam ser tratados adequadamente aqueles que nos fossem simpáticos! E sendo os doentes – tal como os profissionais de saúde, aliás – uma amostragem da população geral, há-os de todos os tipos, uns dignos de simpatia, outros antes pelo contrário. E todos devem ser tratados da melhor maneira possível. Não se fale, pois, de simpatia ou antipatia na relação entre médicos e doentes, ou cuidadores e cuidados, mas sim de empatia.

O esforço pessoal e activo para estabelecer empatia com quem é tratado tem de fazer parte integrante do profissionalismo de quem trata, e ela deve ser treinada, e mantida, e depois aperfeiçoada ao logo da vida profissional. Neste aspecto, é crucial que quem trata doentes tenha em conta as suas emoções, bem como dos que lhes são queridos e os acompanham de perto nessa hora de preocupação e sofrimento, as compreendam, as sintam, comunguem com elas, embora, e isto é fundamental, sem se consumirem nelas. É muito importante que os pacientes e seus familiares sintam essa compreensão e essa sintonia, e que existe preocupação e vontade de ajudar, e que tudo isso seja feito sem se perder o sangue frio e, para tal,  o distanciamento afectivo necessário.

Estabelecer empatia com o doente implica conversar com ele, ouvi-lo, questioná-lo, olhá-lo nos olhos, mostrar-lhe que estamos ali, diante dele, a procurar entendê-lo e ajudá-lo. Mais, que o vamos ajudar e acompanhar no esforço que vai ter de fazer até ficar curado. E é importante tentar perceber os seus receios  e procurar fazê-los desaparecer ou atenuar, não dando falsas esperanças mas nunca as tirando por completo. A empatia com o doente é, na verdade, uma arte, fácil e intuitiva para alguns, mais complexa para outros, mas todos a devem procurar atingir e melhorar. Porque ela é fundamental quando se lida com pessoas, neste caso pessoas doentes, e com estas a parte científica e tecnológica da medicina, só por si, é pouco.

É claro que para se estabelecer empatia é preciso um contacto pessoal suficientemente estreito, e prolongado, e isso num hospital implica estar o tempo necessário na enfermaria, junto dos doentes e dos seus familiares. E que cada doente possa identificar, dentre o conjunto dos médicos do Serviço, o ou os que são “os seus” médicos, que com ele lidam diariamente na sua doença e no seu internamento, a quem apresentam em primeira mão as suas queixas, e a quem os familiares se podem mais directamente dirigir. Por maioria de razão, é com os enfermeiros que o contacto é mais constante, pois são eles quem está presente a todas as horas na enfermaria. Por isso a função dos enfermeiros é muito importante na relação empática com os pacientes internados. E é a este propósito, aliás, que é o texto escrito nas Reclamações do Hospital, e que serve de mote a este editorial. Texto elogioso e agradecido, sim, mas que, lucidamente, exorta o Conselho de Administração a tomar pró-activamente as medidas necessárias para se poderem manter as condições para os doentes serem tratados da melhor maneira possível, incluindo no aspecto de que aqui estamos a  falar.

É preciso que o número de profissionais seja o necessário, e que, no caso dos enfermeiros, permita que a equipa que contacta com cada doente seja consistentemente a mesma, não sendo obrigada a mudar diariamente e assim impedir aquelas longas conversas que a autora do texto refere,  com os doentes e ouvindo e acolhendo as preocupações da família.  E essa acção dos enfermeiros, muito para lá do seu trabalho puramente técnico, mas incluída no seu conteúdo profissional, tem um alcance que vai muito além da parte humanitária que é elogiada naquela “reclamação”: ela, na verdade, deve preparar os doentes para o que lhe vai acontecer no hospital e logo após a alta, e desse modo contribui, e dum modo hoje considerado quase decisivo, para uma melhor evolução durante o internamento e um mais rápido restabelecimento após sair. Aliás, é um dos pilares a não esquecer na ERAS (enhanced recovery after surgery). A qual alguns conselhos de administração aplaudem com entusiasmo, pensando nos possíveis internamentos mais curtos, mas nada fazem na realidade para implementar!

Em suma, tudo a propósito de empatia, e do modo como neste Serviço ela se consegue estabelecer com os doentes, pesem embora as condições para isso cada vez mais difíceis criadas entre nós. Todos os doentes são importantes, naturalmente, mas é bom que possamos transmitir a cada um e à sua família que, se não é o único que temos para cuidar, é com certeza o que nos monopoliza o esforço e a preocupação profissional. E, com ele, todos e cada um dos outros. E saber que não acontece neste Serviço o que sei que aconteceu noutro, em que, face à preocupação insistente e angustiada do marido duma doente mal, ainda por cima agravada por uma pneumonia nosocomial nesse seu internamento, o director, enfadado, lhe disse: “Sabe, esta doente para si é a sua esposa, mas para nós é apenas mais um número... E temos muitos!”. Porque não, porque empatia não é isso.

Carlos Costa Almeida

In Newsletter da Cirurgia C, Número 22, Julho 2018, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC


8.7.18

A  EUTANÁSIA

Recentemente no nosso país recrudesceram as conversas e as discussões sobre a eutanásia, e houve inclusivamente uma votação no Parlamento com ela relacionada. Os cidadãos não se devem alhear do assunto, e por maioria de razão os médicos, que não podem mesmo ignorá-lo, já que ele os envolve directamente e por definição. Mas é evidente que há antes de mais que saber, com rigor, do que se trata e sobre o que se opina e eventualmente decide.
A palavra eutanásia deriva dum vocábulo grego composto por “eu” (bom) e “thanatos” (morte), e lireralmente significava “boa morte”, no sentido duma morte tranquila, sem sofrimento. Não tinha, pois, a conotação polémica, e até ominosa, que hoje se lhe atribui. Conta-se que o imperador romano Augusto, sempre que lhe diziam que um conhecido havia morrido serenamente, exclamava “Que os deuses me concedam uma eutanásia assim!”. No nosso tempo, o termo corresponde a ajudar um doente a terminar a vida, para aliviá-lo de dor e sofrimento insuportáveis. Na verdade, essa ajuda pode significar, realmente, pôr termo à vida do doente. Ou, sem medo das palavras (que não se deve ter), matá-lo. Vejamos como e em que condições.
Sendo o objectivo genérico da medicina “prolongar e vida e evitar a morte”, terminar a vida não poderia deixar de suscitar uma série de acaloradas discussões no âmbito ético, religioso, médico e jurídico. Alguns entendem-na como um acto de misericórdia do médico, dentro das suas funções de cuidar dos doentes, fazendo com que os que não podem ser salvos possam morrer “bem”, sem a indignidade dum sofrimento atroz, destruidor em vida da sua personalidade; outros consideram que é uma perversão dos seus objectivos, mesmo uma inversão, tal como na obra de François Truffaut, Fahreneit 451, grau de destruição, em que os bombeiros se transformaram nos que ateavam programada e profissionalmente os fogos…
Antes de continuar, tenhamos noção de alguns procedimentos relacionados directamente com a ideia de eutanásia. Distanásia, por oposição, significa “má morte”, e em medicina entende-se como o adiamento da morte de um doente que se encontra em fase terminal, sem esperança de cura e em sofrimento, condicionando-lhe uma morte lenta e dolorosa, com o recurso a tratamentos médicos considerados desproporcionados. Com o mesmo significado é também  usada a expressão "obstinação terapêutica". Ortotanásia, em alternativa às duas, é a morte natural, no momento certo. Não confundir eutanásia com suicídio assistido, no qual o médico fornece ao paciente os meios necessários para pôr termo à própria vida, desde que se verifiquem da parte do doente os pressupostos de incurabilidade, grande sofrimento e desejo, por isso, de morrer.
Eutanásia é o acto intencional de proporcionar a alguém uma morte rápida e indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável e que provoca um grande sofrimento. Pode ser classificada em voluntária e involuntária. Na eutanásia voluntária é a própria pessoa doente que, de forma consciente e dentro dos parâmetros necessários, pede para ser morto. Na eutanásia involuntária a pessoa encontra-se incapaz de expressar o desejo de morrer e essa decisão é tomada por outrem, geralmente cumprindo o desejo anteriormente expresso pelo próprio nesse sentido. A eutanásia pode também ser classificada em activa e passiva. A eutanásia activa é o acto de intervir de forma directa e deliberada para terminar a vida do doente, a eutanásia passiva consiste em não realizar, ou interromper, o tratamento necessário à sua sobrevivência. Esta última poderia eventualmente confundir-se com não praticar distanásia, mas a diferença é que o tratamento abandonado poderia ser eficaz na doença em causa, enquanto na segunda se procura apenas arrastar a vida sem outro objectivo.
A eutanásia, onde é permitida por lei, deve ser levada a cabo por médicos, ou sob a sua supervisão, já que é realizada por motivos clínicos. Os mais comuns, da parte de doentes terminais, são a dor intensa e insuportável, a dispneia marcada e angustiante, a paralisia extensa. Também têm sido apontados a incontinência, a disfagia, náuseas e vómitos, que provocam uma redução significativa da qualidade de vida do doente e uma depressão profunda. Outro motivo psicológico reside no medo de perder o controlo do corpo, a dignidade e a independência. A verdade é que uma depressão psíquica conduz caracteristicamente ao suicídio e, na impossibilidade deste, poderá justificar o pedido de suicídio assistido ou de eutanásia voluntária; o que não significa que, melhorando um pouco, e uma vez passado o período depressivo, o doente não possa deixar de querer morrer.
A eutanásia está no centro de um intenso debate público com diversas considerações de ordem religiosa, ética e médica, que têm origem em diferentes perspectivas sobre o significado e valor da vida humana. Entre os argumentos a favor da prática da eutanásia estão a alegação de que as pessoas têm o direito a tomar decisões sobre o seu corpo e escolher como e quando querem morrer, e que o direito à morte faz parte dos Direitos Humanos (entretanto, se um qualquer indivíduo se tentar suicidar procurar-se-á impedi-lo, e se tentar várias vezes poderá ser proposto para tratamento psiquiátrico). Entre os argumentos contra, estão razões que se prendem com a vontade de Deus, ou falta de respeito pela inviolabilidade da vida, e pelo seu valor, ou considerações éticas sobre a função do médico, que é tratar e não matar. Um óbice mais técnico é o de a permissão da eutanásia voluntária, caso se aceite do ponto de vista moral, poder acabar por levar a casos de eutanásia involuntária, para reduzir custos com a saúde ou ter mais camas vagas (como na Alemanha na segunda guerra mundial, para acomodar o excesso de feridos que vinham da frente de batalha), ou encobrir homicídios. ou colaborar numa eliminação sistemática de todos aqueles que as autoridades julgarem incómodos ou prejudiciais para a sociedade ou para a “raça” (eutanásia eugénica, voltando ao exemplo da  Alemanha nazi, em que a prática, estabelecida legalmente e com suporte médico, sem ser nos campos de concentração, foi de “terminar vidas que não valia a pena serem vividas”). Paralelamente, invoca-se que a existência de cuidados paliativos de qualidade retirará a indicação clínica para eutanásia ou para suicídio assistido, insistindo nessa antinomia.
Na maior parte dos países não existe legislação específica a permitir a eutanásia, pelo que terminar a vida dum doente que sofre, tal como fornecer-lhe os meios para o suicídio, é homicídio, punível com pena de prisão, embora frequentemente mitigada por ser um “homicídio piedoso”. Está, no entanto, dentro da lei o médico decidir não prolongar a vida em casos de sofrimento extremo, e administrar sedativos mesmo que isso diminua a esperança de vida do doente. Na Europa, apenas Bélgica, Luxemburgo e Holanda autorizam a eutanásia activa e o suicídio medicamente assistido, dentro de regras clínicas estabelecidas, sendo a Holanda o primeiro dos três a torná-los legais (2001). Na Suíça, a eutanásia não está legalizada mas o suicídio medicamente assistido sim, e do mesmo modo no Canadá e em cinco estados dos 52 dos Estados Unidos da América. Do resto do mundo, apenas a Colômbia autoriza a eutanásia voluntária activa e o suicídio assistido. A eutanásia involuntária é ilegal em todos os países e geralmente considerada homicídio. Mesmo nos países em que a eutanásia voluntária é legal, esta continua a ser considerada homicídio se não estiverem cumpridas a condições previstas na lei. No entanto, da Holanda chegam relatórios mencionando, para além de suicídios assistidos e eutanásias a pedido, doentes mortos sem terem expresso desejo disso, no momento ou previamente (por testamento vital, por exemplo), e mesmo sem o seu conhecimento ou das respectivas famílias, embora, naturalmente, sempre alegando-se razões médicas.
É, quanto a mim, nestas últimas circunstâncias, e naquelas mais antigas, que residem as maiores dúvidas na legalização do suicídio medicamente assistido, embora com regras muito estritas e que o tornem capaz de ser moralmente aceite. É que elas mostram ser possível o que é chamado “slippery slope”, isto é, de um procedimento muito restrito se ir deslizando para um maior alargamento das indicações, primeiro presumindo o desejo não expresso, depois resolvendo mesmo sem essa presunção, e aí por diante, eventualmente misturando as razões iniciais com fins diferentes, como seja de os médicos decidirem se doentes têm ou não vidas que mereçam a pena ser vividas, ou se as camas que ocupam não seriam mais necessárias para outros. Não seria nada inusitado e que não se possa prever, porque já aconteceu.
Em Portugal, foi recentemente posta à votação parlamentar a despenalização do suicídio medicamente assistido, tendo sido recusada. Embora, pessoalmente, não tenha uma ideia definitiva sobre o assunto,  face a todos os argumentos num sentido e noutro, não creio que se possa considerar moralmente inaceitável, e por isso forçosamente ilegal, o proporcionar a morte a um doente terminal, sem esperança de cura, em sofrimento intenso sem possibilidade de ser controlado significativamente, desde que ele o pretenda expressa e conscientemente. É, na realidade, um acto médico de misericórdia, embora também compreenda que para alguns de nós possa ferir o fim último da nossa profissão. Por isso, ele não poderá nunca passar a ser parte integrante e obrigatória do conteúdo funcional de cada médico. Mas trata-se de ajudar um doente a atravessar com alguma serenidade um momento tão dramático da vida como é a morte, depois dum período prolongado de grande sofrimento, já sem esperança. Fala-se do direito a morrer com dignidade, embora este, ao fim e ao cabo, não seja um direito individual  absoluto, já que é necessário que outros reconheçam ter as condições médicas exigidas para lhe ser concedido. Será, para quem o aceite, muito importante ter a certeza inquestionável de estarem reunidos esses pressupostos clínicos necessários, para além da vontade inequívoca, consciente, informada e esclarecida do interessado, e de esta não resultar, por exemplo, dum estado depressivo ocasional.
Como comentário final a este assunto, não posso deixar de referir situações intimamente relacionadas com ele e que são muito mais frequentes do que aquelas em que um doente possa desejar que lhe seja proporcionada a morte. Refiro-me a quando um doente de avançada idade necessita de cuidados mais diferenciados e, portanto, mais dispendiosos, ou mais consumidores de tempo e de recursos, e tal lhe é recusado. Como exemplo, um doente muito idoso que é operado de urgência, e que na sequência disso teria necessidade de cuidados intensivos, e a respectiva Unidade se recusa a recebê-lo, afirmando que “não vale a pena investir” naquele doente, por causa da idade; nessa impossibilidade, o paciente fica no recobro do bloco operatório, ou na enfermaria, onde eventualmente vem a recuperar, e tem alta, bem, de regresso aos seus entes queridos, que o esperam com ansiedade e amor… sem nunca sequer imaginarem que houve alguém no hospital que decidiu que “não valia a pena” tratá-lo...  É que não se trata de não intervir num doente com grande probabilidade de morrer nessa intervenção, e maior de sobreviver se não for intervencionado: aí a preocupação é pela vida do doente. Ou de recusar fazer um tratamento que não tem qualquer possibilidade de resultar, num doente sem esperança de se salvar: aqui seria distanásia, e essa já se sabe que se deve evitar. Não, é alguém que decide se o doente “tem uma vida que vale a pena viver” ou não; e, pela abstenção terapêutica, a maior parte das vezes não vive mesmo, o que poderia não acontecer se tivesse sido tratado… Claro que situação diferente ainda é se não houver vaga de internamento, ou houver mais do que um candidato para uma só vaga: aqui terá de se fazer um escalonamento da gravidade das situações clínicas em apreço, e dos próprios doentes, idade e vitalidade incluídas. Nessa altura, por muito que custe, por vezes terá de se escolher um em detrimento de outro; a obrigação do médico em todas as situações é fazer por cada doente o melhor possível, mas dentro das condições de que disponha no local onde trabalha. Agora, simplesmente desistir dum doente porque é muito velho, ou porque pode vir a ficar internado muito tempo, e isso “não vale a pena”, soa a eutanásia involuntária, e essa é proibida em todo o lado. E, afinal, são situações dessas que fazem temer o tal “slippery slope”, referido atrás, e a que eventualmente o suicídio assistido poderia vir abrir a porta…
Carlos Costa Almeida
In Newsletter da Cirurgia C, Número 21, Junho 2018
Director do Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC