VAMOS ÀS CARREIRAS – VI*
Terminamos hoje esta série de seis artigos sobre as carreiras médicas. Neles procurámos elencar o que elas tinham e conseguiram de bom, e mostrar o que as colocou em agonia. E o que o seu desaparecimento previsivelmente arrastará. Procurando ao mesmo tempo mostrar o que há a fazer, e também a não fazer, para eventualmente as ressuscitar. Duma forma positiva, e para que não nos acusem de estarmos entre todos os que se calaram, ou acomodaram ou, pior ainda, se aproveitaram. Façamos uma resenha final.
A nova lei de gestão hospitalar conduziu acima de tudo a uma “administradorização” dos hospitais, com passagem da gestão clínica para um plano totalmente secundário, perfeitamente subsidiário da gestão administrativa, da contabilidade pura e dura, tornada o centro de tudo. Foi uma mudança radical em instituições que deveriam estar centradas na actividade clínica, desempenhada e gerida pelos médicos, com o contributo directo do pessoal dos laboratórios e de enfermagem. Assistiu-se, por via dessa lei, a um aumento enorme do número de administradores nos hospitais, assumindo eles o papel de capatazes dos médicos. Sem que nada, absolutamente nada, os qualifique para essas funções. Quer dizer, o acessório tornou-se a si próprio central, e secundarizou o que é o âmago imprescindível e nuclear duma empresa para ser um hospital.
Em termos económico-financeiros as coisas não melhoraram, já vimos. Em França procura-se reduzir custos com a saúde – recordemos que era a melhor da Europa nesse campo (quando Portugal era 6º), mas com uma despesa de 14 % do seu PIB, contra os nossos 10%, do nosso pobre PIB. Para isso eles têm procurado recriar e desenvolver os hospitais públicos, no sentido do que nós tínhamos e ao invés do que temos vindo a fazer. A primeira medida de contenção que tomaram foi reduzir drasticamente as despesas com administradores e administrativos – também ao arrepio do que por cá se tem feito…
Em termos médicos desencadeou-se uma total desierarquização nos serviços hospitalares, com chefes nomeados apenas porque alguém “achou” que sim. Só isso levaria ao colapso das carreiras, assentes na hierarquia profissional conferindo autoridade e responsabilidade. Foi, mais uma vez, a ideia de substituir líderes por capatazes: o resultado está à vista. Toda a prática da medicina hospitalar foi posta em causa, e isso vai-se reflectir na qualidade dos serviços prestados. Que diminuirá ainda mais à medida que a formação for sofrendo, por essa mesma ausência de estruturação baseada nos conhecimentos científicos, na diferenciação técnica, nas provas dadas.
As carreiras soçobraram, os internatos estão em perigo, o Serviço Nacional de Saúde torna-se periclitante. Como já referimos, o grande responsável por isto continua a dizer que faria tudo igual – ainda não se apercebeu do que fez. Um Secretário de Estado diz que não sabe o que vai ser do Serviço Nacional de Saúde – já se começou a aperceber.
O Ministério da Saúde, agora liderado por uma médica, reconhece finalmente que as carreiras médicas estão acabadas mas fazem falta (o que durante muito tempo afirmámos quase sozinhos, criticados até por quem não queria que se falasse sequer nisso). Mas, em vez de aceitar modificar o que veio provocar a derrocada, insiste apenas em tentar remediar os estragos. Será que isso é possível? Ou estar-se-á, também aqui, a trocar o essencial pelo acessório?
Pretende-se que as carreiras sejam baseadas num acordo colectivo de trabalho, dele derivando um contrato colectivo a que só pode aceder quem estiver inscrito no sindicato que subscreveu o acordo. Quer dizer, quem quiser entrar numa carreira terá de estar obrigatoriamente sindicalizado. E no sindicato certo. Isto é, um médico, para além de ter de estar inscrito na Ordem, para poder exercer medicina, passa a ter de ser sócio dum sindicato para poder percorrer a sua carreira profissional.
Uma orientação política na saúde, que pareceu conduzir a uma liberalização nessa área, acabou por redundar na proletarização dos médicos. Tão grande e completa que, para poderem trabalhar integrados numa carreira, terão de estar sindicalizados. Quem não o quiser estar poderá tentar um contrato individual de trabalho, mas sem acesso à carreira.
É isto que parece desenhar-se para o futuro, e que levanta, obviamente, várias dificuldades. Desde logo, e se os sindicatos existentes não se entenderem? Se um fizer um acordo com o Ministério e o outro não? Se a carreira passar a ser tão dependente dum sindicato, que razão impedirá os médicos de se juntarem em sindicatos que melhor defendam os seus interesses na sua área ou modo de trabalho específicos?
O estabelecimento de graus baseados em concursos inter-pares, como os que havia, não levanta dificuldades. Mas o que obrigará cada unidade empresarial hospitalar, que contrata quem quer, do modo que entende, para fazer o que achar melhor, sem quadro fixo, a pagar mais a um médico por ter subido na carreira, ainda por cima para continuar a fazer o mesmo que fazia antes?
Quem obrigará as empresas-hospital, geridas com independência quase absoluta, por administrações lá colocadas como se fossem donos, a atribuir mais responsabilidade, mais autonomia, funções de chefia e de direcção técnica, aos médicos que forem subindo na sua carreira? É evidente que a lei de gestão aqui em causa teve como um dos seus fins, precisamente, quebrar essa hierarquia de competência, paralela e atentatória das nomeações pelos chamados “bons serviços”. Daí a avaliação SIADAP que se prepara para os médicos, o que, como também desde logo dissemos a quem nos quis ouvir, já se previa após a desagregação das carreiras.
Trata-se de um sistema de classificação que existe para si próprio, que não deriva naturalmente da actividade normal dos trabalhadores. Quer dizer, obriga a que cada um faça o que é bom para a classificação, embora isso não corresponda ao seu trabalho normal. É algo estranho enxertado na actividade clínica do hospital, que consome esforço e tempo a esses trabalhadores e veio obrigar a toda uma burocracia extra – também aqui mais administradores e funcionários administrativos – usada depois por quem rege o hospital do modo que quiser. O que é que isto tem a ver com uma carreira profissional? Nada. Quando ainda por cima os avaliadores são os chefes nomeados “ad hoc” pelas administrações.
É evidente, a nosso ver, que a progressão na carreira tem de ser a base da progressão no hospital, justificando a evolução remuneratória. Os chefes terão de ser os mais graduados, com a autoridade que daí deriva, liderando a equipa com a aceitação de todos, e orientando depois a avaliação do desempenho dos seus colaboradores. Qualquer coisa que não leve a isto não fará reviver as carreiras. Reconhecemos as suas virtualidades e acreditamos que seria possível recriá-las, mas em convivência com o que as matou é que não cremos que possam ter muita saúde e vitalidade. Continuaremos a lutar por elas, com o apoio que temos sentido dos colegas, dizendo frontalmente o que pensamos. Mesmo que isso nos afaste dos que tomam decisões e dos que participam nelas. Mas com a consciência tranquila, e esperança no futuro.
*Artigo escrito em 2009.
In Farpas pela nossa Saúde, 2009, ed. MinervaCoimbra